“Não tem que cancelar, e, sim, ler criticamente”, diz Lilia Mortiz Schwarcz

Em Imagens da branquitude, historiadora e escritora recorre recorre a uma rica iconografia para para destrinchar histórias e abrir uma imensa possibilidade de leituras e reflexões sobre o Brasil

Na Universidade de São Paulo, onde Lilia Moritz Schwarcz se graduou em História, em 1980, um dos cursos que ministra é Lendo Imagens. Nessas aulas, ela desmonta, como um quebra-cabeça ao contrário, várias imagens, buscando indícios e vestígios de fatos, revelando comportamentos, ações e relações da sociedade. Para isso, utiliza mecanismos históricos, sociológicos, antropológicos, psicológicos e filosóficos. Emprega todas essas ramificações das Ciências Sociais para interpretar fotos, pinturas, retratos, cartazes, mapas, anúncios publicitários… É o aprofundamento dessa observação e análise o que ela elabora em Imagens da branquitude, A presença da ausência (Companhia das Letras).

Lilia oferece, neste seu novo livro, em abundância, aquilo que a tornou na sociedade uma das vozes relevantes saídas do meio acadêmico: reflexões sobre o Brasil. Parte de diversas imagens, escolhidas a partir de critérios temáticos, para destrinchar histórias e abrir uma imensa possibilidade de leituras.

“A branquitude também cria padrões de beleza e de sociabilidade, ao mesmo tempo em que é grande produtora de imagens e, portanto, de imaginários nacionais. (...) Paradoxalmente, a branquitude, enquanto representação social, conforma uma sorte de invisibilidade que não gera reflexão sobre si. Transforma-se, pois, na norma que não precisa ser nomeada, que classifica e estuda os ‘outros’, e que, não obstante, não é classificada – uma forma confortável de ser e estar na sociedade. A despeito de a sociedade branca ser uma categoria relativa, já que atravessada por outros marcadores sociais de diferença como raça, gênero/sexo, região, geração e de classe social, pertencer a ela em geral significa uma espécie de passaporte de privilégio”, analisa, no livro.

Na publicação de 432 páginas, Lilia Schwarcz faz jus ao título de imortal da Academia Brasileira de Letras, honraria recebida no dia 14 de junho de 2024, quando passou a ocupar a cadeira 9, que pertenceu ao poeta, diplomata e historiador Alberto da Costa e Silva, seu “segundo pai – afetivo e intelectual”, como disse no seu discurso de posse. Em Imagens da branquitude, ela apresenta mais um livro em que a fluidez de sua escrita não permite que a densidade do texto pareça algo saído de um acadêmico, mas de uma escritora com o completo domínio da palavra.

Nesta entrevista à revista Pernambuco, Lilia, inclusive, atribui tanto ao período como editora na Companhia das Letras, quanto ao Instagram, no qual passou a postar com afinco a partir do início da avalanche de desmandos bolsonaristas, a influência na sua forma de escrever hoje. Segundo a autora, sua escrita se tornou mais clara graças a alguns seguidores na mídia social, que costumavam reclamar que não entendiam o que estava sendo dito em alguns de seus posts.

Em meio a seu trabalho como professora na USP, em Princeton, sua vida de pesquisadora, curadora do Masp, desde 2015, e autora de livros, Lilia Moritz Schwarcz ainda encontra tempo para se dedicar a postagens quase diárias no Instagram – que saem de suas próprias mãos e não de assessores. Nelas, faz análises breves (nos possíveis 2.200 toques permitidos na legenda da plataforma) em que trata de assuntos do cotidiano do Brasil e do mundo, arriscando-se ao escrutínio diário do público, que geralmente, na internet, se divide entre lovers e haters. Com 555 mil seguidores no Instagram, tem um público tão diverso, que inclui a cartunista Laerte, a cantora Zélia Duncan, o comediante Paulo Vieira, o ator Paulo Betti, a deputada Erika Hilton, o jornalista Octavio Guedes e o escritor José Castello (colunista da Pernambuco).

Antes de se tornar influenciadora no mundo digital, Lilia era conhecida no mundo acadêmico e literário. É cofundadora da Companhia das Letras. Criada em 1986 por ela e o marido Luiz Schwarcz, nos fundos da gráfica Cromocart, que pertencia ao avô dele. A empresa surgiu com foco em literatura e ciências humanas. Um de seus primeiros títulos, a reedição de Rumo à estação Finlândia (1986), de Edmund Wilson, logo despontou como best-seller.

No primeiro ano em atividade, a editora já tinha lançado 54 livros. Hoje, são mais de 8.500 títulos ativos em seu catálogo, e, em média, são lançados 400 novos títulos ao ano. Mas Lilia Schwarcz não gosta de falar sobre os bastidores da Companhia das Letras e, sim, de seu trabalho como professora, pesquisadora, autora, influencer, e sobre temas difíceis, e atuais.


Como você consegue dar conta de ser professora, pesquisadora, autora, editora e ainda influencer?
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Eu durmo muito bem. Oito horas. Isso me ajuda. Antes de dormir, sempre leio um romance ou quadrinhos. Começo o dia fazendo ginástica ou correndo. Sou muito focada, e gosto muito do que faço. Na editora, não estou mais tão presente como antes. No começo, formei a coleção de não ficção, depois o Letrinhas, ajudei nos quadrinhos. Mas agora eu não tenho mais esse tempo todo. Porque como eu dou aula aqui, dou aula em Princeton… É complicado. Pesquiso e tenho meu Instagram.

Essa aula nos Estados Unidos é à distância?
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Não. Funciona assim: Comecei 2009 como Visiting Professor. Em 2011, fui convidada como Global Scholar.  Como Visiting Professor, e, sobretudo, como Visiting Professor, tenho de ficar pelo menos quatro meses lá. Como Global Scholar, a princípio, eu ficava três meses. Ou seja, um mês e meio no primeiro semestre, e um mês e meio, no segundo. Agora, eu fico um mês. Só na época da Covid é que foi on-line.

Você já lançou quase 30 livros. Como consegue produzir tanto? O Imagens da branquitude começou a ser escrito desde quando?
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Alguns livros são feitos com colegas professores, e também com alunos. Como a Enciclopédia Negra, que eu fiz com o Flávio Gomes. Cada livro tem o seu ritmo. Imagens da branquitude, por exemplo, é um livro de vida toda. Porque, há muitos anos, eu dou um curso na USP que se chama Lendo Imagens. Nele, eu faço um pouco o que eu fiz aqui no livro. Eu tenho imagens que eu vou lendo, que eu vou discutindo com os alunos e aprendo muito nesse processo. Essa mesma ideia de ler (imagens) é quase uma missão minha na academia, faz muito tempo. Essa ideia de tirar as imagens desse lugar confortável, desse lugar de ilustração e incluí-las como documentos muito importantes, tal qual um documento escrito. Eu já fazia isso nas aulas, tanto em Princeton como na USP. E aí comecei a fazer no Instagram. Toda vez que eu coloco lá, “Lendo Imagens”, o povo se assanha todo, adora. Então o que aconteceu, quando eu acabei o meu último livro, o Lima Barreto, eu pensei: “Vou escrever”. Mas, sei lá, e aí os livros acabam entrando, acabam aparecendo. Esse foi um livro que demorei pra escrever. Porque foi preciso medir muito as palavras, tomar muito cuidado com os termos, escolher muito bem as imagens. Algumas imagens são mais ofensivas, então é preciso aprender o que vai dar grande e pequeno. Essas são todas questões muito importantes pra mim.

Como você coletou e selecionou essas imagens? Quais foram os critérios de escolha?
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Há um elemento fundamental para esse livro: o meu papel como curadora. Já faz um tempo que eu comecei a trabalhar como curadora do Masp, e fiz várias exposições. Primeiro, eu fiz Histórias mestiças com Adriano Pedrosa, ainda fora do Masp. Depois, eu fiz Histórias da loucura, Histórias da infância, Histórias da sexualidade, Histórias afro-atlânticas, Histórias das mulheres. Essas exposições também me deram muita cancha com as imagens. Tenho, comigo, um acervo muito grande de imagens. Toda vez que eu vou dar aula, eu dou aula com imagens. Para escrever o livro, eu fiquei muito na dúvida se seria cronológico ou temático. No Masp, a gente faz muitas exposições que têm núcleos temáticos. No caso do Masp, cotidianos, máscaras, religiões, enfim, whatever. E, no caso desse livro, eu tinha temas que eu trabalhava mais: sapatos, monumentos, sabonetes, amas, imagens de embranquecimento, imagens da democracia racial. Esses temas acabaram se transformando nos capítulos. Há uma sequência cronológica. Eu começo, por exemplo, com as alegorias e com os mapas do século XVI. Mas sempre me aproximo dos artistas contemporâneos.

Queria que você falasse sobre o termo “a presença da ausência”, e “invisibilidade”, que é uma palavra muito utilizada atualmente pelo movimento negro, mas você está usando com outro sentido.
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O livro é muito devedor a intelectuais negros e de muitas mulheres negras. A Saidiya Hartman, Christina Sharpe. Se você pensar, a Cida Bento, a Sueli Carneiro... São todas referências muito fortes e que percorrem o livro todo, tanto que eu chamo a atenção que talvez o tema da branquitude não seja novo. Talvez a novidade esteja em enfrentar as imagens. Quem trabalha muito com essa ideia de invisibilidade é o Michel-Rolph Trouillot. Esse historiador haitiano de quem eu gosto muito, e é negro. O que chamou a atenção para mim foi um fato, divisor de águas, quando eu li o livro dele. Sobre por que a modernidade define a si mesma a partir de três revoluções: a Revolução Industrial, a Revolução Americana e a Revolução Francesa. Mas por que a modernidade não inclui a Revolução do Haiti, a Revolta Negra dos Escravizados, na História dita universal. Ele explora muito a ideia de invisibilidade. Ou seja, como a História, teoricamente, lembra muito, mas ela esquece demais. Ela produz grandes invisibilidades. Não é que eu abandone o conceito de invisibilidade manipulada, utilizado por essa literatura negra. Ao contrário, no capítulo das "Amas Negras", a questão do anonimato e da nomeação da visibilidade e da invisibilidade aparece muito. Mas você também tem razão, eu subverto essa questão para pensar em outras invisibilidades. Ou seja, no começo, quando eu faço uma espécie de statement, dizendo o que é branquitude, eu digo lá, a branquitude se baseia no passado, mas se exerce no presente. A branquitude classifica, mas não é classificada. A branquitude produz normas, mas não vive essas normas. Talvez, o maior exemplo dessa presença da ausência… É um conceito muito foucaultiano que eu uso, porque Foucault é quem diz que o poder é invisível. Tão mais eficaz ele é, quanto menos ele se demonstra. É esse conceito que eu estou utilizando, arregimentado, para falar dessa invisibilidade. Se você for a um museu de etnografia, você verá que o mundo inteiro percorre aquelas fileiras: a Ásia, a África, a Oceania, a América do Sul. Quem não está lá? Os europeus que classificam, os europeus brancos. É essa invisibilidade muito foucaultiana de que eu falo. Essa invisibilidade do panóptico de Foucault. Ou seja, que é aquela torre que fica no centro das prisões da modernidade, que os guardas ficam ao centro, de forma que eles veem todo mundo, os prisioneiros. Mas os prisioneiros não conseguem vê-los. Então eles se sentem obrigatoriamente vigiados.

Como você equilibra o fato de ser historiadora, antropóloga e, ao mesmo tempo, uma autora com um texto denso, mas bom de se ler, fluido, longe de academicismos? Isso é uma coisa natural ou você pesa isso na hora de escrever?
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Olha, eu acho que tudo nessa vida é processo, por isso que eu vou narrando tanto. Por exemplo: durante muito tempo, na Companhia das Letras, eu cuidava da coleção de não ficção. Então, o que acontece? Na academia, até por uma questão muito boa, porque a academia brasileira é internacionalmente reconhecida, a gente acaba se especializando muito e nos direcionando a um público muito especializado também. Daí não se preocupa tanto em definir os conceitos, já parte do pressuposto de que a pessoa que te lê compartilha desses conceitos. Na Companhia das Letras, eu aprendi muito com os demais editores, com o Luiz Schwarcz, por exemplo, que a legibilidade não é sinônimo de simplicidade. Escrever com clareza não quer dizer que está facilitando. Um texto claro muitas vezes é mais complicado, porque tem de traduzir conceitos que muitas vezes são de difícil apropriação. Eu sempre gostei de textos que fossem muito claros. Sempre li muito romance, sempre li muita poesia. O meu dia se fecha com romance. E eu gosto muito de voar com um bom romancista. Acho que vem daí essa ideia e esse apego a um texto fácil, a um texto que não deixa de ser complexo, que não deixa de trazer a bibliografia, mas que traz aí recursos de linguagem. Eu gosto muito, eu dou aula assim, eu falo assim, eu uso muita metáfora. Acho que o uso do Instagram me ajudou muito. Eu faço tudo sozinha, no Instagram. Sou eu que sento lá e faço o post; e comento, quando eu posso comentar, às vezes eu não consigo. Como o Instagram é uma rede, por vezes, democrática, ou seja, a pessoa vai lá e fala, “olha, você falou e eu não entendi nada do que você está falando”. Eu, no começo, levava muito desse comentário. “Ela fala, ninguém entende o que ela está dizendo.” Eu falo, vou fazer ele me entender. Então, eu me preocupo. É uma questão de gosto mesmo, sabe? De gosto e de estilo.

Como é ter o feedback imediato do que você está pensando?
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Começou muito com a minha experiência no Masp, com o Adriano (Pedrosa), porque quando a gente fazia as exposições, as Histórias, foi o Adriano quem disse para mim, “você tem que colocar as imagens no Instagram”, “veja o que as pessoas acham, Lilia, veja se elas gostam”. “Se elas gostarem, a chance de elas irem bem ao museu vai ser fácil.”

CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA

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