Cartaz de 1983
O impacto da estética católica se afirma mais nessa paisagem?
RCB Eu já tivera um encontro com os rituais da Igreja Católica, mas por volta dos sete anos, assisto a um auto de Lapinha. É um teatro de tradição ibérica, que se preservou no Cariri por conta, talvez, do nosso isolamento. Os autos de lapinha foram usados pelos catequizadores, sobretudo jesuítas, para converter os indígenas ao catolicismo. Na cena da lapinha estão Sol, Lua, Estrela, astros reverenciados pelos povos originários, adorando o Deus Menino. Também boi, burrinho, Reis Magos, José, Maria, anjos, ciganas, beija-flor, borboleta, pastoras e indígenas. Tratava-se de um teatro manipulado pelos catequistas, mas encantador, sobretudo pela singeleza e antiguidade. Deslumbrei-me, mesmo sabendo que não podia brincar nele, era interditado aos meninos, apenas meninas brincavam nas lapinhas. Havia outra interdição, pessoas de minha classe social não se apresentavam em lapinhas no Alto do Seminário, lugar de gente humilde e pobre.
Normalmente, as pessoas confundem pastoril, lapinha e presépio.
RCB Havia as lapinhas não vivas, os presépios, montadas em casa ou nas igrejas. Por isso digo sempre “Auto de Lapinha”, referindo-me ao espetáculo. Já completara 11 anos quando comecei a assistir aos reisados, representações com duração de até 12 horas. Em alguns reisados se apresentavam dezenas de figuras nas chamadas do terreiro, a penúltima parte do auto, quando eram convidados os bichos e representados entremezes, alguns bem medievais como a disputa da alma por São Miguel e o Diabo. Considero o reisado a dança dramática brasileira mais rica e variada.
E como isso se conectou com o teatro popular que vivenciou nesses anos?
RCB Assistindo aos reisados, um teatro popular de rua e terreiros, percebia uma dramaturgia nova, que eu ainda não alcançava. O teatro amador do Crato, feito por pessoas de classe média, era o típico teatro burguês, de qualidade duvidosa. Em 1967, Assis Lima e eu tivemos nossa primeira parceria, adaptamos Vidas secas, de Graciliano Ramos, para o teatro. A adaptação ficou boa, mesmo hoje sou bastante generoso com ela, mas a encenação foi um desastre.
Foi perto de sua saída do Crato para estudar em Fortaleza, em 1968. Em 1969 você se muda para o Recife. Seria sua terceira paisagem?
RCB Sim, o Recife é a minha terceira paisagem, parecida com o Crato apenas na vegetação. Assis e eu chegamos aqui em 1969, pouco depois do AI-5. O aparelho repressivo da ditadura militar era terrível. Eu vinha de Fortaleza e Assis de São Paulo, ambos querendo estudar medicina. Isso nos aproximou. Procuro ver bons filmes, conhecer diretores famosos, leio autores latino-americanos, me encanto com Borges, convivo com artistas da contracultura, acompanho o movimento tropicalista e o movimento hippie, ouço música americana além da brasileira, faço amizades. Assis e eu tentamos juntar a bagagem do sertão, suas inesgotáveis histórias e tragédias, à bagagem do Cariri acolhedor, com os rituais da igreja, as procissões, as lapinhas, os reisados, os banhos de nascente, a floresta do Araripe, os engenhos, e a vida boa à nova bagagem recifense. A universidade me decepciona, o curso de medicina é um ambiente estéril, sinto-me deslocado, num constante enfrentamento com os colegas. Há professores que honram o cargo, mas não são maioria.
Você morou na Casa do Estudante, não foi?
RCB Sim, fomos morar na Casa do Estudante Universitário com um estudante de filosofia, fundamental em nossa formação, Ângelo Monteiro, poeta, intelectual, pensador, esteta. Ao mesmo tempo em que éramos obrigados a conviver num mundo estéril, criávamos uma bolha de intelectuais, artistas e livres pensadores. E haja metafísica, conversas intermináveis, audições de música, troca de livros. Existia um ambiente intelectual e politizado no Recife, focos de resistência, vivos e pulsantes. A cultura popular fugia ao controle da repressão. Descobri-me frequentando duas universidades: a faculdade de medicina, de que não gostava, e a escola que batizei como Universidade da Cultura Popular Livre e de Tradição Universal. Só me reconciliei com a medicina a partir do sexto ano, quando fui para o internato do Hospital Barão de Lucena, conheci a médica que se tornaria minha esposa, Avelina Brandão, e vários mestres a quem devo o conhecimento da ética e da arte médica. Passamos a frequentar o Departamento de Extensão Cultural (DEC) (da Universidade Federal de Pernambuco). Embora muito jovens e neófitos, convivíamos com músicos, gravadores, pintores, poetas e escritores. Pessoas como Gilvan Samico, Francisco Brennand, Marcus Accioly, Alberto da Cunha Melo, César Leal, Hermilo Borba Filho, Antonio Madureira, Antonio Nóbrega, outros circulavam pelo DEC, cujo diretor era Ariano Suassuna.
Foi nessa época então que o conheceu?
RCB Ariano sempre foi um artista encantador, bem-humorado, generoso, cheio de histórias e ensinamentos. Assisti a leituras de trechos do seu romance A Pedra do Reino, às vésperas de ser publicado. Sentindo as dificuldades financeiras que passávamos, nos encomendou pesquisas no Cariri cearense, porque desejava conhecer o que se produzia ali. Nossas férias se tornaram oficinas de trabalho. Enquanto os amigos subiam aos clubes de pé de serra, nós nos embrenhávamos no mato gravando encomendação de mortos, reisados, lapinhas, benditos de romeiros, rabequeiros, banda cabaçal, penitentes...
Quanto dessas tradições se perderam, da época em que fez esse levantamento para hoje?
RCB Muito. Um caboclinho, antigamente, chegava a ensaiar 114 manobras e passos, segundo registro do coreógrafo Bergson Queiroz. Hoje, quando um caboclinho desfila no Carnaval, no máximo evolui com cinco ou seis manobras e passos. Os brincantes têm 20 minutos para se apresentar, então para que ele vai ensaiar 114 manobras e passos? As pessoas que fazem julgamento nos desfiles, nem sempre estão preparadas para isso. Não deveria existir julgamento, apenas a apresentação da brincadeira, livremente. Valoriza-se mais os enfeites, os cocares, os capacetes. Com a força da cultura televisiva, as brincadeiras mimetizam as escolas de samba. A mesma coisa com o reisado, que já não apresenta o repertório a que nós assistimos e gravamos no Crato. As pessoas têm interesse apenas no cortejo, mas e os passos? E as lutas? E as representações? E os dramas? Nós alcançamos o reisado com toda a força de sua dramaturgia, a abrição da porta, os cantos para o divino, as marchas de estrada. A brincadeira começava por volta das cinco, seis horas da noite e ia até o dia amanhecer.
Como começou a parceria com Antonio Madureira?
RCB Em 1972, eu tinha escrito um conto chamado Lua Cambará. Em 1975, Assis com um grupo de cinegrafistas de São Paulo propõem que a gente escreva um roteiro. Assim, nos metemos na aventura de fazer cinema. Convidamos Antonio Madureira para criar a música. Ele era um dos compositores brasileiros mais celebrados. Pedimos que compusesse e gravasse a música de graça, pois não tínhamos dinheiro. Ele topou e surgiu a amizade e a parceria.
A gente está falando de 1975 e de Lua Cambará. Nessa época você se dedicava mais a que gênero? Ao conto mesmo, à dramaturgia?
RCB Escrevia um conto por ano e engavetava. A maior parte do tempo trabalhava em medicina. Fiz o curso médico, de 1970 a 1975, estudando de manhã e de tarde e à noite dando aulas. Trabalhava para trazer minhas irmãs do Crato, elas queriam estudar no Recife. Em 1975, eu já morava com Avelina. Em 1979, nasceu nosso primeiro filho, em 1982 uma filha.
Estamos em 1982, nascimento de sua filha, um ano antes da estreia do Baile do Menino Deus, em 1983.
RCB Em 1979, quando nasceu nosso filho Joaquim, trouxemos uma babá do Crato e ela passava o tempo cantando as músicas da lapinha. Zoca (Antonio Madureira), Assis e eu tínhamos uma queixa: nossos filhos não têm nada o que cantar do Natal brasileiro, apenas o importado Jingle bell. A gente precisa criar uma brincadeira de Natal. Lembrei que Assis tinha me mandado, por volta de 1974, um esboço de um auto de Natal. Eram umas três folhas de papel com versos, que eu guardara numa gaveta. Zoca tinha gravado um disco de muita repercussão para o selo Eldorado, Brincadeiras de roda, estórias e canções de ninar. Quando apresentei as primeiras ideias, ele se encantou. Ao mesmo tempo em que compúnhamos as músicas, escrevíamos o texto teatral. Escolhemos três peças do reisado para o conjunto de 12 composições: Boi, Burrinha e Jaraguá. E não deixamos de fora os personagens da lapinha: Borboleta, Beija-flor, Anjo, Cigana, Reis, Caboclinhos... Para atestar a antiguidade do auto pastoril, a minha avó materna, que teria 126 anos se fosse viva, cantava uma canção aprendida quando era criança.
Há toda uma atmosfera que vocês respiram. Acha que foi determinante para a criação do Baile?
RCB Se não tivéssemos a vivência desse universo, não teríamos a condição de criar o Baile. Em 1982, gravamos a música no estúdio do Conservatório Pernambucano de Música, com a ajuda de amigos, para enviar ao selo Eldorado e tentar um contrato. Fomos aprovados e gravamos no Recife com artistas da cidade e uma única convidada de São Paulo, na antiga Rozenblit, importante gravadora de Pernambuco, mas decadente na época. Em 1983, lançamos disco e espetáculo.
Você falou da experiência com Vidas secas, na juventude, quando não tinha nenhuma experiência, mas em 1983, tornou-se encenador do Baile. Como foi isso?
RCB O disco estava pronto, o texto finalizado (a primeira edição do livro seria lançada anos depois), faltava a encenação do espetáculo. A produtora teatral de maior sucesso no Recife, com grandes montagens e êxitos, era a Práxis Dramática. Procurei um dos quatro sócios, diretor da TV Universitária, o ator, radialista e professor José Mário Austregésilo. Fiz a proposta da encenação. Falta um encenador, quem pode ser? pergunto a Zé Mário. Você mesmo, ele me responde. De repente, me transformo num diretor teatral.
Como vê o Baile com respeito a essa tradição que ele louva?
RCB O Baile não existiria sem a nossa bagagem arcaíssima, ibérica, negra, indígena, mas ele é próprio. Shakespeare reescreve o teatro que existia na sua época, mas nesse teatro é tudo novo, inventado por ele, Shakespeare. O Baile é a criação de Assis Lima, Ronaldo Correia de Brito e Antonio Madureira. Já não é reisado, nem lapinha, as pessoas reconhecem esses autos na dramaturgia e passam a querer conhecer as brincadeiras originais, valorizando-as como um bem delas. O Baile aproximou a cultura popular de uma classe social que a ignorava. O reisado se funda numa questão metafísica, achar uma casa e abrir uma porta. O maior de nossos mistérios continua sendo este: abrir uma porta e transpor o limiar. É uma questão tão metafísica quanto a da existência de Deus e do Diabo para Guimarães Rosa no Grande sertão. Porém, o poeta muda a linguagem que o marcou. No Baile ela já não é a mesma do reisado. Sem o reisado talvez não tivéssemos criado uma dramaturgia nova, alcançando o mistério desse Baile. E o mistério se trata de uma casa exilada, perdida. É o mesmo drama dos povos obrigados a migrar, no mundo inteiro. É o drama de dois galileus, José e Maria, procurando uma casa onde se abriguem, em Belém de Judá. Há uma porta que precisa se abrir, diante da qual se fazem todos os sortilégios, brincadeiras e falam-se libertinagens como no teatro shakespeareano ou de Gil Vicente. Ontem, o professor Luís Reis me dizia, “mas que coisa, aquele público de 30, 40 mil pessoas ali gritando ‘abre!’, ‘abre!’”. Porque esta é a nossa vocação e vontade: abrir uma porta e revelar o sagrado. Na plateia, estão pessoas de credos diversos, evangélicos, católicos, ateus, umbandistas, gente do candomblé, todos esperando que a porta se abra e o sagrado se revele.
Foto: Gianny Melo/ Divulgação
O Baile tem uma capacidade de, ao longo das décadas, ir incorporando elementos do Zeitgeist, de conectar-se com o momento da encenação, transpondo a tradição. Seria uma característica que ajuda na longevidade do espetáculo?
RCB Os entremezes novos são voltados para a realidade em que vivemos. Por exemplo, estavam queimando e demonizando as religiões dos orixás, os terreiros. Criamos um entremez para os orixás, na cena de louvação ao Menino. Ficou belo, as comunidades de candomblé sentiram-se honradas. Pensamos em incorporar uma comunidade da periferia do Recife, Canal do Arruda. Chamamos um grupo de hip-hop e break, Okado do Canal, para a cena dos reis. A turma compareceu com vários dançarinos de skate, bicicleta e patinete. No ano passado, quem representou a Maria foi Bela Maria, uma cantora negra de rap e trap. O público vibra com essas incorporações porque se sente representado.
O que os levou a fazer Bandeira de São João, de 1987, e Arlequim de Carnaval, de 1989, que compõem, com o Baile, a Trilogia das Festas Brasileiras?
RCB Queríamos trabalhar não apenas os temas ligados ao Natal, mas também ao São João e ao Carnaval. Com o Arlequim, a gente desejava mostrar que Pernambuco tem todos os ritmos do carnaval. Seria uma maneira de diminuir o preconceito em relação às brincadeiras populares. Pensávamos chegar às escolas, ao público em geral, com um produto de qualidade. Nesse tempo não existia o costume das pessoas irem ao coco do Xambá e dançar, ir ao Alto José do Pinho ver e tocar no maracatu Estrela Brilhante.
Você começa a publicar ficção nos anos 1980, embora já escrevesse desde a década de 1970. Por que retardou tanto esse momento?
RCB Comecei com o teatro, mas também escrevia prosa e engavetava. Ganhei um concurso de contos da Fundarpe em 1988 e, no ano seguinte, saiu um volume editado pela CEPE, em que apareço com três narrativas curtas, ao lado de uma escritora e dois escritores. O livro se chamava Novos ficcionistas pernambucanos. Em 1996, depois de ter publicado uma adaptação em prosa do Baile do Menino Deus, pela Bagaço, publico pela mesma editora uma coleção de 12 contos, As noites e os dias. Depois de ler esse livro, Davi Arrigucci Junior me telefona, faz comentários generosos sobre a escrita e me propõe duas editoras de São Paulo, uma delas a minha atual Companhia das Letras. Vou para a Cosac Naify e começo a publicar sistematicamente. Passo a ter editores fortes, que me cobram serviço, como Rodrigo Lacerda e Augusto Massi. Em Livro dos homens (Cosac Naify), de 2005, tem um conto chamado Cravinho, o resultado de duas vivências antigas: uma, quando fui gravar no interior do Ceará, ainda estudante de medicina, a encomendação de um morto.
As vivências da cultura popular e do teatro foram alimentando sua ficção.
RCB À medida que eu investigava as brincadeiras populares, também investigava o kabuki, o nô, o kathakali , a ópera de Pequim, a dança de Bali, a Commedia dell’arte, sobre a qual fiz formação com uma professora holandesa, para aprofundar meus conhecimentos. Vivia inquieto, uma vida de busca, pesquisa e estudos. Com o parceiro Bergson Queiroz, na década de 1970, registramos dezenas de brinquedos do Grande Recife. Nas noites livres, saíamos de casa com máquina fotográfica e gravador para conversas com os donos de brincadeiras e brincantes. Fui aluno do passista Nascimento do Passo e de Mestre Salustiano. Tomei aulas na rua com o caboclinho Tapirapé, do Alto José do Pinho. Alguns brincantes eram meus pacientes, iam ao meu consultório ou ao hospital, eu cuidava deles e eles me instruíam em seus ofícios. Também frequentava terreiros e maracatus. Não era um mero visitante, à margem da vida dessas pessoas, vivia dentro das comunidades. No livro Retratos imorais, tem um conto chamado “Rainha sem coroa”, em que narro a história de duas rainhas de maracatus do Recife. Escrevendo meu último romance, descobri assustado que desde criança vivo imerso nesse mundo de pesquisa. Ao terminar o romance, me perguntei: terá valido a pena?
E você já respondeu essa pergunta?
RCB O filme Decameron, de Pasolini, termina assim: Giotto, que com sua corporação de ofício havia pintado um afresco, sonha com a Virgem Maria. E no final ele se pergunta: “Por que criar uma obra de arte tão bela, se sonhar com ela é muito mais belo?”. Assim, antes do final de qualquer livro, entro no sonho seguinte e dessa maneira suponho adiar a morte. No fundo, crio para livrar-me de morrer.
Um aspecto que se percebe de contato entre processo de gestação do Baile e de seu processo de criação de ficção é essa reinauguração de vivências. Partindo de uma memória profunda, individual, mas inserida num imaginário ainda mais profundo, reinventa-se o mito. Podemos dizer que esse aspecto é determinante em sua poética? Ele une sua dramaturgia à sua ficção. Você concorda?
RCB Concordo com esse deslizamento bem lacaniano entre a dramaturgia do texto teatral e a prosa. Dostoiévski cria nos seus romances grandes cenas de teatro, o mais puro Shakespeare. No meu romance Dora sem véu, que você leu, deve lembrar a cena em que Dora chega com os filhos à casa do padre Cícero. Há dezenas de pessoas esperando para falar com ele, é uma cena longa, bem teatral. A mesma coisa em Estive lá fora, na cena da ponte, quando Cirilo pensa em se matar. Em Galileia, o encontro de Adonias com o tio Domísio, preso num quarto da Casa do Umbuzeiro há 300 anos, também é teatro, é memória, mas tudo inventado por mim.
Eu percebo que há uma relação conflituosa com essa memória. Ora de refração, ora de acolhimento. O tempo todo você acolhe essa memória, mas se sente uma refração também. Isso é muito presente em Estive lá fora, em Dora sem véu e em Galileia, e em muitos contos. Já o seu teatro me parece mais acolhedor da tradição, da memória. Você concorda com esse raciocínio? Crê que a refração da memória está mais presente na sua ficção do que no teatro?
RCB Minha ficção trabalha o conflito. Em Galileia, o personagem Adonias reclama porque era obrigado a aprender nomes de árvores. Ele não reconhecia utilidade nessa memória aprendizado, todo o tempo está procurando esquecer. Talvez no meu último romance esse tipo de conflito esteja menos evidente nos personagens. Mas acho que ter conflito com a memória é uma maneira de sentir-se vivo, pulsante, em estado de criação. Se o artista deixa de ter conflitos com a sua memória, ele para de criar e vai escrever livros de autoajuda.
Mas ainda assim no teatro, há uma conciliação maior. Você se reinventa lá, mas sempre no sentido de acolher, de integrar novas memórias, mais do que contrapor essas vivências do presente com o passado. Por quê?
RCB Há, no meu teatro, um chamamento à vida. Talvez porque se trata de uma memória mais para trás, uma memória de um tempo de pura felicidade.
O Baile hoje tem uma dimensão que já transpôs gerações, transpôs essas paisagens de que falamos no começo e se tornou, ele mesmo, uma paisagem na memória de muitas pessoas. O Baile transporá a mim e a você. Hoje, depois de 40 anos, você pensa em como serão os próximos 40 anos dessa paisagem?
RCB Não sei, da mesma maneira que não sabia quando tinha 30 anos e comecei essa aventura. No Crato, moramos um tempo numa casa de esquina, de frente para um bosque, e no quintal meu irmão mais velho construiu um viveiro para prender passarinhos. Nunca gostei que aprisionassem as aves. Quando o projeto do irmão faliu, sobrou um retângulo de tijolos e cimento. Transformei-o no meu teatro. Ali eu encenava as bobagens que escrevia. Não passava de uma criança, mas usava de mil ardis até conseguir dinheiro para as encenações, como pedir esmolas em nome dos santos – que os santos nunca viram – e rifar um conjunto de canetas Parker que ganhei de presente. Não sei dizer o número de vezes que rifei essas canetas. Ganhava sempre alguém de muito longe, inexistente, pura mentira. Penso que da mesma maneira que fui alimentado pela memória de um teatro que assisti aos três anos e me provocou o desejo de ser dono de um cravo de papel crepom, é possível que outros amantes do teatro tocados pelo Baile desejem transmitir esse sonho para as novas gerações. E assim, o Baile do Menino Deus irá se perpetuar por mais 40 anos. Meu pai não deu muita importância ao “drama de calçada” que encenou, lá nos Inhamuns. Talvez nunca tenha sabido o que uma brincadeira sem grande significado para ele, significou para o filho, mudando as escolhas de vida do menino de três anos.