Paradoxo parindo paradoxos. Ateu e místico, obsceno e angelical, clássico e moderno. São apenas alguns exemplos de suas várias contradições. Dedicou-se com extrema intensidade à poesia e, sem pensar duas vezes, a abandonou, para sempre. De indiscutível sobre ele talvez sejam apenas as suas características físicas: Foi assim que o Departamento Holandês de Guerra o registrou quando do seu alistamento.
Ele era filho do oficial-de-infantaria Frédéric Rimbaud (1814-1878) e Marie-Catherine-Vitalie Cuif Rimbaud (1825-1907).
Verlaine, na descrição que faz de Arthur Rimbaud, no livro Poetas malditos, diz: “o homem era alto e de boa constituição, quase atlético, com o rosto perfeito de um anjo em exílio, seu cabelo castanho claro despenteado e seus olhos com um pálido e inquietante toque celeste”.
Notabilizou-se pelos poemas que compôs na escola em latim. A facilidade para línguas levou a que aprendesse, além do próprio idioma francês materno, o inglês, alemão, italiano, espanhol, holandês, russo, grego, árabe, hindi e amárico.
No fim de 1876, pode-se dizer que perdeu, em definitivo, o interesse pela literatura. O livro Iluminações foi publicado, parcialmente, em 1886, e, com todos os textos, em 1895. Segundo o seu editor, Verlaine, esse livro teria sido escrito entre 1873 e 1875.
Enquanto a sua fama como poeta difundia-se pela Europa, ele empenhava-se no sucesso comercial na África. Esta aventura durou até sua morte.
Há quem o faça mais do que o precursor da poesia moderna, também dos costumes pós-modernos, como as relações homoafetivas. Seu biógrafo Graham Robb afirma que Rimbaud e Verlaine criaram a “identidade” gay atual.
Em 2021, Emmanuel Macron, presidente da França, rechaçou transferir ao Panteão os restos mortais de Rimbaud, atendendo a um desejo de Jacqueline Teissier-Rimbaud, sua sobrinha-neta. Em carta a Macron, ela diz que se opõe à ideia de Verlaine e Rimbaud juntos. A iniciativa havia partido dos admiradores de ambos os poetas, entre eles diversos intelectuais e artistas de grande prestígio. O objetivo do abaixo-assinado era propor algo simbólico: uma espécie de casamento post-mortem entre os dois autores. Um até-que-a-morte-não-os-separe mais, apesar do tiro de revólver dado por Verlaine em Rimbaud, numa crise histérica.
A sobrinha-neta de Rimbaud argumentou que o seu tio-avô nem começou nem terminou sua vida com Verlaine. O seu convívio não passou de dois anos de juventude.
Numa declaração ao jornal espanhol La Vanguardia, Régis Jauffret (prêmio Gouncourt) ironizou sobre a chegada de Rimbaud e Verlaine ao panteão: “Se entrassem juntos, em menos de um mês alguém denunciaria Verlaine por abuso sexual, porque quando se tornaram íntimos Rimbaud tinha 17 aninhos de idade”.
Desse modo, Rimbaud, ao menos por enquanto, não terá seu descanso perturbado. Continua no modesto cemitério de Charleville-Mézières. Uma visitante frequente à tumba de Rimbaud é a compositora, cantora, artista e escritora Patti Smith. Exceto pelas cartas que regularmente são recebidas lá, tudo é paz e langor. Sim, cartas. Uma caixa amarela de correio com o nome de Rimbaud está instalada na entrada do cemitério. Ao menos duas missivas por semana chegam. Há um responsável por recebê-las e guardá-las: Bernard Colin.
Como disse Gilles Lapouge (1923-2020), num artigo ao mesmo tempo correto e pessoal, publicado no suplemento literário do Estadão:
“Rimbaud escreve a que será uma das maiores obras da poesia mundial – Uma temporada no inferno. Um livro pequeno, que sacode todas as estruturas, passando pelas ciências, história, psicologia e pelo inconsciente – um livro que inventa uma poesia nova, um livro de sangue e de ferro, em que ele conta também os seus amores com Verlaine. (...)
“O longo, eterno mutismo, que envolve o adolescente genial como uma espécie de morte branca, permanece até hoje. Mil poetas, mil críticos tentaram encontrar-lhe a chave – mas é quase certo que ninguém, jamais, penetrará o seu sentido. Vamos, apenas, ao final deste passeio ao longo das existências miseráveis e gloriosas de Verlaine e de Rimbaud, propor uma imagem, uma metáfora.” (Suplemento Literário d’O Estado de S. Paulo, 6 de setembro de 1981).
Melhor do que tentar interpretar ou, em vão, explicar a obra de Rimbaud, é lê-la. Ela inaugura uma era de uma nova espécie de romantismo em que alguns poetas admitiram a ideia da poesia como um fim em si mesmo. Não quer significar, apenas dizer, sugerir quando muito. Em alguns pontos, propõe até algo como uma sinestesia absoluta e a comunicação direta – de alma para alma.
Afora os poemas escritos na infância e outros dispersos em verso e prosa – além de várias cartas indissociáveis de sua biografia literária – houve Uma temporada no inferno e umas Iluminações. A outra metade da vida é menos do que prosa. É apenas ação. Se não havia boa explicação para os seus versos e a sua prosa, muito menos para a sua atitude. De extrema entrega à poesia e de extremo abandono dela. O resto é silêncio. Lenda. Rumor. Ou a tagarelice interminável dos seus admiradores e críticos.
No Brasil, as primeiras referências a Rimbaud ocorreram quando ele ainda vivia. Em 1886, na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, há uma menção a um trecho do seu livro Iluminações. Em abril de 1888, no jornal pernambucano Homens e Letras, diz-se, no artigo “Simbolistas e decadentes”, de Maurice Peyrot, que “Arthur Rimbaud era então perfeitamente desconhecido quando, em 1869, teve a glória, outros dirão, a inspiração buffônica, de escrever seu famoso soneto das vogais”. Transcreve-se o poema.
A expressão inspiração buffônica tanto pode ser uma adjetivação de “bufão” quanto aproximação de um autor específico. Georges-Louis Lecrerc, conde de Buffon (1707-1788), autor de uma monumental História natural, em 44 volumes. Versado em matemática, cosmologia, biologia e botânica, quis abarcar todo o conhecimento natural acessível no seu tempo. O seu trabalho influiu na composição da famosa Enciclopédia liderada por Denis Diderot (1713-1784) e em autores como Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829) e Charles Darwin (1809-1882). Para ele, ter estilo é essencial a um bom escritor. Aliás, “escrever bem é, ao mesmo tempo, pensar, sentir e expressar-se bem; com gênio, alma e gosto”.
Charles Baudelaire (1821-1867), que o definiu como “pintor da natureza pomposa”, confessou: “Eu jamais me envergonhei, mesmo diante dos jovens escritores de meu século, de minha admiração por Buffon”. Por outro lado, a inspiração bufônica não estaria distante do saltimbanco, do bobo-da-corte. Do bufão que move o riso dos outros e de si, acrobata do histriônico e do burlesco.
Independentemente de ser mais certa ou menos certa tal inspiração, o fato é que, quase vencido o século XIX, os intelectuais brasileiros ainda não tinham “digerido” Rimbaud. Basta ver o comentário de um jornal como Cidade do Rio, em 4 de novembro de 1899. Artigo assinado pelo pseudônimo Claude, a respeito do Canto novo, de Edmundo A. Rego. Que é desancado por medíocre, e confrontado na sua epígrafe de Théophile Gautier (1811-1872):
“A ideia de Théophile, o verso que o Sr. Edmundo agarra para escudo, assimilado por uma imaginação desequilibrada dá como resultado o célebre soneto de Mr. Rimbaud, Voyelles, ou as idiotadas sem nexo das Illuminations. Se o parnasianismo é um filho refinado do plebeu romântico, a escola degradante e ignóbil dos simbólicos, gritos de impotência, e paciência de ignorantes, nada mais é que o produto incestuoso da ternura de um pelo outro, exageradamente hiperestésica”.
De 1854 a 1891 transcorre-se toda a vida de Rimbaud. Foi, portanto, um autor da segunda metade do século XIX. No Brasil o interesse positivo por sua obra não se disseminou antes dos anos 1920. Até o fim do século XIX predominavam as visões negativas sobre os autores alcunhados de decadentistas, ou “decadistas”, como grafava-se frequentemente. Entre os tais incluíam-se Rimbaud e Paul Verlaine (1844-1896). Quando este morreu, em 1896, ganhou um necrológio muito simpático assinado por Xavier de Carvalho (1861-1919) – escritor português e correspondente de vários jornais, inclusive brasileiros. Tinha conhecido pessoalmente Verlaine e trocado com ele algumas cartas. Mas também houve anti-homenagens, como a de Alves de Farias, no jornal O Comercio de São Paulo (1896, janeiro, 25):
“Como em algum tempo já me deixei seduzir pelas falas de sereia da referida escola, e li Saint-Pol-Roux, um poseur, e li Rimbaud, um sujeito cujo nome só é já uma onomatopeia e a quem não é preciso ler para adivinhar a cor dos seus aa, o amarelo dos seus uu e toda a traquitana do século desenterrada numa escavação histórica, creio que poderei falar, mais ou menos com hesitações na natureza e tipo do decadismo”.
Se o Brasil do fim do século XIX e início do século XX amava os positivistas e parnasianos, esse quadro começa a mudar a partir da década de 1920, com o advento do Modernismo. Mário de Andrade (1893-1945) foi um dos primeiros a ler Rimbaud além do pitoresco. Um artigo de Marcos Antonio de Moraes, publicado, em 2010, no número 4 da revista Escritos, da Fundação Casa de Rui Barbosa, mostra, com minúcias, o percurso de tal leitura. A referência inevitável é A escrava que não é Isaura (1922-1924). Neste pequeno ensaio-manifesto, Mário de Andrade converte Rimbaud no vagabundo de uma parábola que faz um monte parir a poesia livre e nua.
Mário de Andrade (Foto: Reprodução)
Em 1º de janeiro de 1925, Esdras Farias publica, no Jornal do Recife, um elogio explícito e longo a Rimbaud: “O perfil de um homem maravilhoso”. Quase três meses depois, a 8 de março, no mesmo jornal, Jarbas Peixoto faz um comentário que algo contém de sociologia da literatura:
“Admite-se que um homem de espírito – um Rimbaud, um Verlaine – seja o que por aí chamam ‘filósofo’: desregrado, meio abstrato, farrista – todo um acervo de estados morais incompreensíveis para a maioria, mas admissíveis e mesmo normais num temperamento de nevroses requintadas que necessita, para não haver desequilíbrio entre a receptividade e a expansão de emoções desencontradas, díspares e até mesmo incoerentes”.
Se alguém propusesse um resumo realmente muito curto de toda a história da vida literária poderia dizer que ela sempre oscilou entre o B de Boêmia e o de Burguesia. Ao primeiro vincula-se o visionário sem método, “sem dinheiro, roupa coçada, chapéu roído, botinas cambadas, e construindo uma obra, dia a dia, pacientemente, ou levantando-a em lampejos coruscantes e brevíssimos – a meio duma existência cheia de torturas e de extremas agonias”.
Também pinta o burguês a pena de Jarbas Peixoto, simplificando-o em poucos traços: “O congressista inepto, o açucareiro amedalhado, o funcionário público servil e pulha, a rafameia inteira de canalhas engravatados – toda essa gente que formiga pelas ruas com ar insólito de sátrapa persa, tem sempre um gesto de superioridade batráquia, de desdém rasteiro e a eterna frasezinha com visos de sardônicas, ‘esses literatos!’ com que supõem diminuir, sequer por um momento, toda a auréola de beleza, que circunda o homem que pensa e que produz algo de belo e de perfeito. A boêmia para eles, os ridículos obesos, é a depravação”. (No ano seguinte, o mesmo texto, sob o título de A grande boêmia e os grandes boêmios foi republicado no Diario de Victoria. Victória é Vitória de Santo Antão, distante uns 50 quilômetros do Recife)
Em 27 de novembro de 1926, na revista recifense Rua Nova, o poeta Arnaldo Damasceno Vieira publicou o poema Voragem. Na epígrafe, o redator explica que aquela composição era “estranha e impressiva”, e nela encontra a “rudeza acre e selvagem que anima tanto a lírica de Rimbaud. Deve ser lida duas vezes para que seu travo delicie”.
Tem-se aí um novo e imprevisto valor da estética assimilável nos trópicos brasileiros. Não mais somente o lirismo adocicado e fácil da trova, outro sabor: o do travo.
Nos anos 1930, a crítica começou a encontrar afinidades eletivas entre os poetas modernos do Brasil e Rimbaud. Um deles: Vinicius de Moraes (1913-1980). Octávio Tarquínio de Souza (1889-1959) disse que Forma e Exegese “é o livro de um grande poeta e a poesia de uma grande alma atormentada”, e menciona “a proximidade, o parentesco espiritual com Rimbaud”. (ver Diario de Pernambuco, 22 de dezembro de 1935).
Efetivamente, a partir dessa década de 1930, vai aumentando o interesse pela leitura de Rimbaud pelos brasileiros. Coincidência ou não, o processo de modernização no país vai avançando pari passu. O Brasil era então empedernidamente rural e conservadoramente urbano. Ainda não havia se generalizado a antropofagia proposta por Oswald de Andrade (1890-1954), e o “selvagem” e o “civilizado” continuavam a ser meras metáforas.
Nos jornais já há menção a poemas de Rimbaud mais arrojados, como O barco ébrio, e são citadas expressões como tempo dos assassinos. Tempos depois essa expressão estaria no título de um livro de Henry Miller (1891-1980) sobre Rimbaud. Pode-se dizer que uma mística de identificação similar com Rimbaud aproxima o estadunidense Miller e o francês Paul Claudel (1868-1955).
O Diário da Manhã, no Recife (21-10-1934) publica uma entrevista com o escritor francês Luc Durtain, em que ele menciona Rimbaud, “cuja fuga para o sertão africano parecia, nos fins do século XIX, uma proeza quase equiparável à viagem de circum-navegação do globo, feita outrora por Marco Polo”. O mesmo jornal divulga, anos depois, um artigo de Humphrey Hare, “Rimbaud na Abissínia” (14-2-1937).
Foi por esses anos 1930 que o poeta Manoel de Barros (1916-2014) descobriu Rimbaud e o impacto dessa descoberta mudou sua poesia para sempre. Ele explica que aprendeu a poesia como a arte das misturas:
“Aprendi com as crianças, por primeiro, que a mistura dos sentidos dá poesia. Ouvi de meu filho certo dia: ‘Pai, eu escutei a cor de um passarinho’. Outra vez, por ler o Correio Braziliene, encontrei lá esta joia falada por uma menina de sete anos: ‘borboleta é uma cor que voa’. Veio Rimbaud e consagrou: ‘Je finis par trouver sacré le désordre de mon esprit’. Pois a desordem das palavras em poesia não é sagração?” (Revista Poesia Sempre, número 21, 2005)
Em 13 e 20 de maio de 1944, o escritor e tradutor Michel Simon pronunciou conferências, na Faculdade de Direito do Recife, sobre Rimbaud. Foi uma iniciativa da Casa do Estudante de Pernambuco e do governo do Estado. O assunto tão específico quanto abrangente: “Rimbaud, Verlaine e a poesia de resistência”. Era então presidente da casa do estudante Potiguar Matos (1921-1996). Entre as figuras ilustres que assistiram às conferências estiveram os artistas Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) e Manuel Bandeira (1900-1964).
Imagine-se que, no ano 1947, quase um século depois do nascimento do herético e anticlerical Rimbaud, uma conferência sobre ele num Círculo Católico. Assim aconteceu no Recife, às 20h15, do dia 7 de outubro. O conferencista chamava-se Tomás Seixas (1916-1993). Não era somente um poeta de talento, mas um dos melhores leitores de Rimbaud. Na verdade, ao longo do tempo, ele fez mais do que falar sobre o francês, traduziu-o. Estes são alguns dos exemplos:
Sensação
“Pelas noites azuis de verão, irei pelos caminhos,
Cortados de trigais, pisar a erva miúda:
Sonhador, sentirei a frescura nos pés.
E deixarei o vento banhar minha testa nua!
Não falarei mais, nem pensarei,
Mas o amor infinito inundará minh’alma;
E irei longe, bem longe, como um boêmio
Pela natureza – feliz como com uma mulher.”
Mais este outro trecho:
“Eu estendi cordas de campanário a campanário; grinaldas de janela a janela; correntes de ouro de estrela, e danço”.
E ainda mais:
“Nas horas de amargura, eu imagino bolas de safira, de metal. Sou mestre do silêncio.”
Como se fosse pouco, o interessado em reencontrar Tomás Seixas e Rimbaud, ainda pode ler estas outras suas traduções:
Poesia:
“Avivando um agradável gosto de tinta da China
Uma poesia negra chove docemente sobre minha
Vigília. Eu vejo os fogos do lustre, me jogo
Sobre o leito do lado da sombra, eu vos vejo,
Minhas amadas, minhas loucas.”
No Cabaré Verde:
“Após oito dias de marcha, com os sapatos rasgados
Pelas pedras dos caminhos; entrei em Charlerol.
No Cabaret Verde, cheguei e pedi tortas
De manteiga com presunto morno.
Estendi as pernas por debaixo da mesa
Das tapeçarias. Foi encantador
Quando a empregada de seios enormes e olhar vivo,
– Não, um simples beijo não pode amedrontá-la!
Sorridente me trouxe tortas de manteiga
e presunto morno num prato colorido,
presunto róseo e branco perfumado
com uma cabeça de alho,
e encheu o chopp imenso com sua espuma,
que um raio de sol retardado dourava!”
As conferências e traduções podem ser reunidas a um ensaio de Tomás Seixas. Nos dias 16 de abril de 1949 e 7 de maio de 1950, no Diário da Manhã, há trechos das suas Considerações sobre o poeta Rimbaud:
“É da maneira seguinte que costumo evocá-lo. E isso me ajuda a compreender melhor a sua alma noturna: como numa projeção cinematográfica vejo desenhar-se em primeiro plano a sua face de um esplendor adolescente, tal qual se vê no estudo de Fantin Latour (a imagem que corresponde exatamente à ideia que faço dele) rodeada de brumas e ao fundo, bastante indecisa uma paisagem qualquer de Paris. E vejo nos seus olhos a ânsia e a mágoa de partir, e por fim a resolução decidida de se ir embora, de tudo abandonar mais uma vez e de permanecer para sempre só, atrocement seul, sem pátria, sem amigos e sem esperança”.
O interesse pela obra de Rimbaud foi constante em Tomás Seixas. Uma prova disso é o artigo publicado no fim da década de 1960: “Rimbaud, poeta satírico” (Diario de Pernambuco, 5 de abril de 1970). No texto “As sombras, a arte e a vida”, publicado no mesmo jornal em 3 de maio de 1973, menciona Une saison en enfer e Illuminations a qualifica-as de acre. Dois anos depois, volta ao assunto, em “O poeta Rimbaud”, em que sublinha a sátira e a revolta como características constantes do poeta (DP, 6/4/1975)
Um dos mais explícitos e enfáticos momentos de celebração da poesia de Rimbaud em Pernambuco na década de 1940 ocorreu por iniciativa de dois poetas francófilos: Vicente do Rego Monteiro e Willy Lewin (1908-1971). No 1º Congresso de Poesia do Recife, de 1941. Foi proposta uma homenagem ao poeta de Une saison en enfer.
No artigo em que faz referência à homenagem, Willy Lewin é quem diz: “o chamado caso Rimbaud não é um simples problema de arte, mas um problema de vida, no sentido mais amplo, mais total da palavra”.
Ele acrescenta:
“Rimbaud deve ter para nós uma importância fundamental como símbolo e exemplo dessas vidas de homem que somente se explicam e se realizam – quase que na sua medida extrema – poeticamente (...) Por isso ele é a sombra que se projeta cada vez mais nítida até o nosso tempo. A lição por ele deixada é que motiva – sem que nós mesmos muitas vezes o saibamos – as nossas próprias atividades, os nossos próprios gestos de poesia.
“Rimbaud foi um sujeito mal-educado, intratável, um aventureiro, um vagabundo, um lawless, um desclassificado perante os códigos, os bons costumes e o bom senso do mundo. ele foi precisamente aquilo que eu chamaria um zero de comportamento. (...) a poesia para Rimbaud foi o seu próprio sangue, a sua própria carne, a sua própria respiração. fora do seu hálito, positivamente morreria como um peixe atirado à praia. Daí o drama da sua vida imensamente desesperada.
“A poesia é uma cousa enorme. Mas é também uma triste e pobre cousa carnal.
“Rimbaud quis mais da Poesia. Rimbaud, o violento, quis mesmo tudo da poesia. Nesse trágico mal-entendido, querendo tudo da Poesia – inclusive o que ela não lhe poderia dar – e não podendo respirar sem ela – o mundo, a vida, a condição de viver só lhe poderiam aparecer sob o aspecto de uma paisagem convulsa de desespero.
“Não tem outro sentido o seu famoso, o seu dilacerante, o seu inapagável grito:
“Vivre, voici l’horreur!
“Podemos agora pressentir o segredo do seu gesto, rasgando todos os seus poemas gráficos e iniciando com a aventura da Somália o seu poema vital, o seu atormentado poema não escrito”. (Diário da Manhã, 27 de julho de 1941).
Foi Vicente do Rego Monteiro, na “Pequena notícia sobre Castro Alves”, escrita em Paris, em agosto de 1947, quem fez uma correlação sobre os dois gênios: o francês e o baiano.
“Teve Castro Alves conhecimento do ‘caso Rimbaud’? Certamente, não. De sete anos mais velho que o poeta de uma Saison en enfer, Castro Alves foi como Rimbaud um poeta precoce e menino prodígio. Seu ciclo poético se inscreve de 1858 a 1871 como o ciclo Rimbaud de 1869 a 1873. Eles viveram poeticamente ‘l’espace d’un matin’. Um teve seu ciclo cerrado pela morte e o outro pelo abandono.”
Ainda na década de 1940, precisamente no dia 20 de agosto de 1950, também no Diário da Manhã, no longo artigo “Rimbaud e a crítica”, Moacir de Albuquerque assinala que naquele tempo era já
“enorme a bibliografia sobre Rimbaud. Possuo alguns volumes recentes que estudam vários aspectos do vidente das Iluminações. São trabalhos de erudição estafante, de análise profunda, versando numerosos aspectos do ‘problema Rimbaud’ – porque o genial e demoníaco poeta já se tornou um problema, cuja solução tem atraído os mais diferentes críticos e exegetas”.
Autorretrato de Rimabud feito em 1883
A verdade é que, quase um século depois do nascimento do “poeta maldito”, o mundo organizava-se com outros moralismos. Talvez tivesse razão Jean Louis Bruch, quando em “Meditando uma arte poética”, por Jules Supervielle afirmou:
“Há mais de um século que a poesia francesa, reagindo contra o racionalismo árido do século XVII, se deu à garra da inspiração. O poeta romântico gostava de fazer figura de mago, de herói noturno, de bela incompreendida. Lautréamont, Rimbaud – aquém ou além da humanidade vulgar – contribuíram por sua vez para fechar a poesia num reino noturno, cortado de breves deslumbramentos. Enfim, o surrealismo veio transformar a obscuridade e a irracionalidade em sistema, em método e em técnica quase. O mergulho no automatismo do inconsciente devia bastar para nos elevar ao mundo super-real da poesia. Compreendemos a reação de Paul Valéry, que, dedicando a Jeune Parque a André Gide, falava da arte dos versos, e qualificava o seu poema de ‘exercício’ ao qual se tinha ‘restringido’”. (Jornal Pequeno, Recife, 19 de junho de 1951).
O ambiente mental e existencial dos poetas no Brasil nos anos 1940 não prescinde de Rimbaud. O que ele representava do “desregramento dos sentidos”, do sensualismo, combina sempre bem com a juventude. Nas duas vidas que teve, a primeira está eternamente na poesia jovem e adolescente.
Naquele tempo, a elite brasileira era, culturalmente, ainda muito “francesa”. A mudança ocorrerá – para todas as classes – após a Segunda Guerra, quando o país assimilou de tal modo a cultura estadunidense, que a colou em si como uma túnica de Dejanira.
A geração de poetas que floresce nos anos 1940 tem entre os seus autores alguns que se tornariam dos mais importantes na poesia e na arte brasileiras. Vicente do Rego Monteiro, Lêdo Ivo (1924-2012) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Francófilos os três nesse tempo – o último por influência de Willy Lewin. Frequentavam a vida boêmia, conversavam sobre cultura, escreviam sua obra.
No poema “O que se diz ao poeta a propósito de flores”, Rimbaud indaga:
“Em suma, uma Flor – Alecrim
Ou Lírio – viva ou morta, vale
O excremento de um pássaro marinho?
Vale a lágrima de uma vela?”
Não é preciso muita imaginação para detectar a presença de Rimbaud na Antiode, de João Cabral de Melo Neto. Inclusive na menção a fezes na parte final do texto associada à poesia e o cuspe à terceira das virtudes teologais, ou seja, a caridade, o amor.
A atmosfera da vida noturna – boêmia, dir-se-ia – de João Cabral e seus amigos no Recife dos anos 1930 e 40 está resumida no poema Cais do Apolo:
“onde barcaças, barcaceiros,
onde escritórios, escrituras:
de dia, todo do comércio,
de noite, de Rimbaud, das putas.
“De noite, os lampiões amarelos
fingiam a noite europeia
entrevista em filme francês
(usava-se muito ‘atmosfera’)”
Tempos depois, Ferreira Gullar (1930-2016) ingressa no mesmo campo rimbaudiano. Ele escreve:
“Introduzo na poesia
A palavra diarreia.
Não pela palavra fria
Mas pelo que ela semeia.
Quem fala em flor não diz tudo.
Quem fala em dor diz demais.”
Embora ele não tenha introduzido na poesia a palavra diarreia – antes dele, os goliardos já chegavam a tanto, e, depois dos goliardos, Rabelais, Rimbaud – deu ao uso das palavras prosaicas e à escola antes exploradas por Charles Baudelaire (1861-1867) e Augusto dos Anjos (1884-1914) – um frêmito novo na sua geração. Note-se que não falta sequer a flor aí nesse trecho do poema de Gullar como na “antiode” cabralina. Sem falar que o Poema sujo de Gullar é rimbaudiano também. A despeito de ele ter declarado ao Pasquim:
“A Literatura não é milagre. As grandes obras da literatura não são grandes coisas. Há uma idolatria da própria literatura. A Divina Comédia... Não é divina porra nenhuma; é um livro chato. O Thomas Mann é um grande escritor, tudo bem, mas se você ler direito, não tem nada de cair de quatro. Ler Rimbaud é muito bom, mas não é lá tão bom assim. Ler Eliot é bom, mas Drummond é bom também. O João Cabral é bom também. É preciso desmistificar. O Joyce é um chato de galocha, porra. O Pound é um dos poetas mais chatos que já existiram no mundo. Só esnobismo faz as pessoas gostarem daquilo. É poeta pra universidade, porque ele fornece possibilidade de fazer tese em cima de tese. E a poesia mesmo não oferece oportunidade a ninguém de fazer tese”.
Em “Dentro da noite veloz”, poema de Ferreira Gullar de 1975, Rimbaud figura bem vivo na sua memória, como se vê nesta passagem:
“O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu a compro à vista aos donos do mundo.”
Um Rimbaud por assim dizer de corpo inteiro no Brasil só vai começar a aparecer na década de 1950. Em 1952, o Ministério da Educação e Cultura publicou a tradução de Uma estação no inferno, feita por Xavier Placer.
Nascido em 1916, em Niterói, filho de espanhóis de Pontevedra e Vigo, na Galícia. Faleceu, em Niterói, no dia 24 de março de 2008. Publicou livros de poesia, de ficção e de ensaio. As suas Doze histórias curtas receberam em 1946 o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras.
No que diz respeito a Rimbaud, não se limitou a traduzi-lo, fez uma conferência sobre ele em 1955 e, pode-se dizer, que o seu ensaio O poema em prosa, conceituação e antologia é parte dessa mesma linha de interesse.
Nessa mesma década, ampliou-se muito o horizonte de Rimbaud no Brasil. Por iniciativa de um jovem poeta alagoano: Lêdo Ivo. Na verdade, ele era um rimbaudiano desde a adolescência. Quem cedo percebeu isso foi Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990) quando comentou o livro dele publicado aos 20 anos de idade:
“O problema da linguagem me atraiu sobretudo no livro As Imaginações, de Lêdo Ivo. Este poeta de 20 anos parece considerar Rimbaud como um irmão mais velho. Ou se o desejarem, como um irmão mais moço, porque Rimbaud aos 20 anos já tinha deixado de escrever. Não é somente o título do livro e a epígrafe com que o abre, que são rimbaudianos. Existe algo que nos faz pensar em Rimbaud e que está ligado à linguagem”. (Diario de Pernambuco, 7 de maio de 1944)
Mais de uma década após esse comentário de AAML é que Lêdo Ivo publicou, pela Editora Civilização Brasileira, sua versão de Uma temporada no inferno e Iluminações. Na introdução ele explicou a gênese daquele seu trabalho:
“Talvez na raiz das traduções a que nos aventuramos, se consubstancie um ato de fidelidade a um colegial que, certa noite, na cidade do Recife, entrou na Biblioteca Pública para ler, pela primeira vez, as poesias de Jean Arthur Rimbaud e, à medida que percorria as páginas do livro, faltava-lhe a terra aos pés, presa da vertigem de um abismo florido e azul”.
Provavelmente, o volume lido por Lêdo Ivo foi Poésies, de 1891 – ano da morte de Rimbaud. É o único título publicado no século XIX que a Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco dispõe do poeta. Os demais são datados do século XX.
Sobre essa tradução referida de Uma temporada no inferno e Iluminações José Paulo Moreira da Fonseca (1922-2004) opinou:
“Lêdo Ivo soube encontrar em português uma expressão conveniente para a poesia de Rimbaud. O interessante é notarmos como essa poesia, feita há oitenta e tantos anos, ainda é ‘revolucionária’, como não perdeu sua ‘violência’, menos sensível no original para um frequentador de obra tão importante, mas que versada em outra língua, como que se ilumina com luz diversa, capaz de ressaltar toda a audácia de seus contornos.
“Tal violência muito decorre da visão metalógica que Rimbaud tem da existência, Rimbaud não nos explica o mundo, prefere, antes, apresentá-lo em suas faces multiformes, no seu concerto aparentemente caótico, deixando ao leitor a tarefa de intuir (quando possível) a conexão entre as coisas. Justamente no contraste que se estabelece mediante a aproximação de seres díspares, é que se situa uma das forças do mundo rimbaudiano, contraste não raro abrupto, cavando um abismo entre os seus termos, exigindo uma ‘sondagem’ que nos leva a descobertas insuspeitadas”. (Tribuna de Imprensa, 22-23 de julho de 1957)
Num lúdico e de todo bem-humorado poema intitulado “Identidades”, publicado em 2004 na revista Poesia Sempre, Lêdo Ivo “resolveu” o mistério do Rimbaud africano poeticopsicanaliticamente:
“Rimbaud não sabia que era Rimbaud por isso abandonou os parapeitos antigos da Europa e foi viver na África”.
César Leal (1924-2013), em 1969, insere no longo poema “Ursa Maior” uma referência explícita a Rimbaud, que consiste numa recriação do seu poema “H” (escrito praticamente um século antes). Os seus versos estão no desenho de uma taça formada por um cogumelo atômico. Como nos nove círculos do Inferno (certamente não escapou ao poeta nem a ‘cabala’ de Dante nem o fato de que inferno em inglês é com H). Esses 9 H formam um retângulo, apoiado num triângulo, de cinco versos, que também se concluem em H e há uma coluna de três H. A base de tudo é o Inferno.
No início da década de 1970, é lançado o longa-metragem Una stagione all’inferno, dirigido por Nelo Risi. Trata-se de uma interpretação livre da vida de Rimbaud – vivido por Terence Stamp (no personagem de Verlaine: Jean-Claude Brialy). A brasileira (do Ceará) Florinda Bulcão, vive Gennet, amante de Rimbaud na Etiópia. Cinco anos antes disso, Rimbaud estivera “presente”, mas de modo sutil, na estrutura e em cenas do filme Pierrot le Fou, de Jean-Luc Godard (1930-2022).
Na época se dizia que se o filme fosse então lançado no Brasil não haveria nenhum livro de Rimbaud em língua portuguesa nas livrarias. Prometia então a Civilização Brasileira o lançamento de uma nova tradução de Une saison en enfer. Em compensação, podia o leitor encontrar muita coisa na língua de Rimbaud, nas livrarias Francesa, Leonardo da Vinci, Hachette, no Rio de Janeiro.
A biografia então considerada a mais completa era a de H. Matarasso e P. Petitfils (Vie d’Arthur Rimbaud), da Hachette, de 1962. Petitfils era, então, o diretor-gerente da Sociedade Amigos de Rimbaud, que editava os Études Rimbaldiennes, o estado da arte sobre Rimbaud. Outra publicação interessante era a iconografia Rimbaud AEIUO, “Collection Génies et Réalités”, também da Hachette.
Em português as opções de tradução de Une saison en enfer continuavam sendo as da década de 1950: de Xavier Placer (1952) e de Lêdo Ivo (1957).
Nas antologias de poesia francesa em português, uma ou outra tradução dos seus poemas versificados, como o soneto das vogais, por Celso Vieira; de “O dorminhoco do vale”, de Rodrigo Solano; “As catadeiras de piolhos”, de R. Magalhães Jr. Então já se encontrava uma tradução do soneto “Vênus Anadiômene”, por Augusto de Campos, inserido no ABC da literatura, de Ezra Pound (1885-1972), publicado pela Cultrix.
Num ensaio de Augusto Meyer (1902-1970), Le bateau ivre – análise e interpretação, foi inserida uma tradução desse poema por Gondim da Fonseca (1899-1977). Este também traduziu o soneto das vogais: posto no seu livro Poemas da angústia alheia, de 1966.
Em 1973, marcando o centenário de Une saison en enfer, a revista Manchete publicou um artigo de Paulo Mendes Campos (1922-1991), da série as “Obras-primas que poucos leram”. Diz o poeta e cronista mineiro:
“Um século antes dos acontecimentos de Maio e do festival Woodstock, ele já largava tudo e botava o pé na estrada. Gênio das palavras, abandonava também a literatura e partia para um projeto mil vezes mais ambicioso: fazer da sua própria vida uma obra de arte. Entre os 16 e os 19 anos compôs algumas poesias, cujo impacto continua se fazendo sentir na cultura ocidental, mais do que nunca. Rimbaud foi o primeiro hippy e hoje o mundo está cheio de rimbauds, que rejeitam a sociedade, industrial e vão em busca de orientes distantes. Mas Rimbaud foi um hipyy de talento e deixou como testamento literário esta obra-prima que poucos – sobretudo na sua época – leram: Une saison en enfer, publicada há exatamente 100 anos”.
Já no suplemento literário de O Estado de S.Paulo (20-1-1974), Alcântara Silveira faz lembrar os 100 anos do aparecimento de Une saison en enfer. Diz que a obra continua a agitar a crítica literária.
Em 1989 há que mencionar o texto Rimbaud – umas férias no inferno. Trata-se de uma interpretação inteligente de Rimbaud feita por Rodrigo Garcia Lopes. Tão atual, como se fosse escrita hoje. Na sequência desse ensaio, há traduções de alguns dos poemas de Rimbaud metrificados e ritmados, inclusive uma versão concretista de um deles: “Eternidade”. A tradução dos poemas foi um trabalho de colaboração entre Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça. Quem tiver a curiosidade de conhecer o resultado, deve procurar ler o jornal paranaense Nicolau (ano III, n. 20). O bem-sucedido trabalho em parceria dos dois continuou e resultou em Illuminations (coloured plates) / Iluminuras (gravuras coloridas), publicado em 2014, pela Iluminuras.
O início da década de 1990 abriu a possibilidade de Rimbaud ser lembrado. Daquela forma referida por Fernando Pessoa e tão comum no Brasil: aniversariamente. Quando faz anos que nasceu e morreu. Se o centenário da morte em 1991 não passou em brancas nuvens de todo, os 140 anos de nascimento em 1994 tampouco. Entre os textos saídos nos media vale a pena revisitar o de Giovani Capra: “Um desregramento de 140 anos”.
Ele faz uma das perguntas fundamentais não em torno de Une saison en enfer, mas do próprio autor e suas decisões.
“Incógnita. Nenhum termo poderia designar de melhor forma a passagem do poeta por este mundo. Dos 20 aos 37 anos de idade, quando sua aventura terrestre foi findada por um carcinoma generalizado, dedicou sua vida a eternas viagens pela Europa e pela África. Neste segundo período, negava de forma contundente que tivesse produzido qualquer obra de valor artístico. ‘O que teria levado Rimbaud a abdicar de tal a forma a criação literária?’, perguntam-se estudiosos até hoje.”
O autor opta como resposta por atribuir a ‘razão’ do abandono da poesia ao ‘peso da maldição’, que também esteve nos ombros de outros autores – dois deles, mencionados: Poe e Arthur. Mas nenhum dos dois desprezou a arte e a literatura.
Capra lembra a influência de Rimbaud sobre toda a geração dos poetas beatniks dos Estados Unidos. Sem esquecer-se de figuras como Jim Morrison (líder da banda The Doors) e Toulouse-Lautrec (1864-1901). (O texto de Capra pode ser lido no jornal Sete Dias, de Caxias do Sul, em 20 de outubro de 1994)
Rimbaud vem inspirando há mais de um século vários compositores. Outro exemplo interessante da música e desconhecido da maioria e localizado no Brasil é o do compositor Jorge Antunes. Sua obra Rimbaudiannisia MCMCXV recebeu o prêmio da Tribuna Internacional de Compositores da Unesco, de Paris. Sua composição de música de vanguarda realizada a partir dos poemas de Rimbaud foi escolhida por representantes de 42 emissoras de rádio do mundo.
Talvez os do mundo da música e Rimbaud estejam mais próximos ainda do que se pensa. Se, por exemplo, tomarmos como referência o que afirmou o escritor João Antônio (1937-1996) sobre Nelson Cavaquinho (1911-1986), pode estar Rimbaud no lirismo de muito samba:
“Eu vi com meus olhos que a terra há de comer, embora sob meu protesto, Cartola e Elton Medeiros fazerem um samba de encomenda à razão de 50 dólares: eles tinham 40 minutos para fazer um samba e fizeram simplesmente O sol nascerá. Eu vi no Zicartola Nelson Cavaquinho escrever letras magníficas que mais pareciam poemas de Rimbaud ou Baudelaire em folhas toscas de papel de embrulho”. (O Pasquim, Rio de Janeiro, 8-14 de novembro de 1984).
Houve, nos anos 1980, em Curitiba, uma banda de nome inspirado em Rimbaud: Estação do Inferno (antes chamada de Contrabanda). O Paraná tem, aliás, um poeta de alma rimbaudiana. Chama-se Paulo Leminski (1944-1989). No poema M, de Memória, ele define Rimbaud como “caçador de miragens”.
Nos meios da comunicação de massa, o comportamento de Rimbaud, o desregramento de todos os romantismos talvez sirva até mais de inspiração do que sua obra. Ao menos foi o que admitiu o compositor e cantor Cazuza (1958-1990), muito popular no Brasil nos anos 1980. Numa entrevista ao jornal A Tribuna, de São Paulo, ele revelou ler muito a poesia beat, e: “li um livro do Rimbaud, mas a vida dele me fascina mais do que a obra dele”.
Nada nos meios artísticos se compara à admiração – alguém poderá dizer: quase fixação – de Patti Smith pela obra e a vida de Rimbaud. Que é muito anterior ao filme Total eclipse, que. nos anos 1990, ajudou a disseminar o interesse por Rimbaud a partir de um recorte fictício sobre sua relação com outro poeta: Verlaine. Dirigido pela cineasta polonesa Agnieszka Holland, tem Leonardo diCaprio e David Thewlis nos papéis principais.
Um dos projetos editoriais mais peculiares do fim da década de 1990 foi a série Literatura ou Morte, da Companhia das Letras. A ideia partiu, curiosamente, de um filósofo: Leandro Konder (1936-2014). Ele escreveu o volume A morte de Rimbaud. É uma viagem anárquica muito mais pelo nome, uma quase sátira à própria literatura, filosofia e mundo editorial que propriamente uma incursão pela vida e obra do poeta.
Em 1993, é publicado mais um livro que se integra à biblioteca rimbaudiana no Brasil que poderia ser chamada de obra fundamental: Rimbaud livre, de Augusto de Campos. Com traduções, transcriações e criações a partir da obra do francês.
Ainda na década de 1990, em Pernambuco, o médico e acadêmico Milton Lins (1927-2015) resolveu enfrentar o desafio de traduzir o “primeiro” Rimbaud. O resultado pode ser conferido no livro Rimbaud em metro e rima.
Vale a pena ler E Rimbaud se fez Rimbauds, de Cláudio Everton Martins da Silva. Uma dissertação defendida, em 2010, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL). A área é a da Literatura Comparada. Também de leitura por assim dizer indispensável é Rimbaud no Brasil, organizado por Carlos Lima e publicado pela UERJ. Claudio Willer (1940-2023), tão rimbaudiano, em mais de um sentido, fez um resumo de vários aspectos importantes das reinterpretações sobre Rimbaud no artigo “Rimbaud, o rebelde”, publicado em 2013, na revista Cult.
O pretexto foi escrever sobre a aposição de uma placa em homenagem a Paulo Mendes Campos numa pracinha no Bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Armando Nogueira (1927-2010), na crônica, comparou Rimbaud a Garrincha (1933-1983): “Gênio em estado nascente”.
Em 2000 a Sulina, de Porto Alegre, lançou a biografia Rimbaud, o filho, de Pierre Michon. Ao mesmo tempo em que sua vida e obra eram levadas ao teatro. A peça tem o título tirada de uma frase sua: O pavoroso riso do idiota. E foi encenada pelo grupo After Ventus.
Não escapou ao teatro brasileiro naquele início de século (2003), sequer o relacionamento de Rimbaud com Verlaine. Disso resultou Pólvora e Poesia, que foi um sucesso nos palcos cariocas e ganhou o Prêmio Shell.
Rimbaud tem sido frequentemente tema da poesia brasileira contemporânea. Está no “Confiteor”, do potiguar Nei Leandro de Castro:
“Gostaria de ter sido amante de Verlaine
e ter roubado seu dinheiro numa noite de insônia,
sem esquecer de levar o revólver
que ele usava para atirar em poetas.
Gostaria que Wilde inventasse histórias só para mim,
depois de quatro noites de absinto e cama
e me pedisse a cabeça do lord Douglas
e as duas orelhas do pai do lord Douglas,
raça repelente.
Gostaria de ter seduzido Rimbaud
e tê-lo trazido de volta à poesia,
às vogais coloridas, às estações infernais,
nós dois carregando nos ombros, sem culpa,
fuzis contrabandeados da Abissínia
para desfechar tiros no ciúme de Verlaine.”
Num modo ainda mais bem-humorado glosou Rimbaud o carioca Rodrigo de Souza Leão. Inseriu de um modo divertido Rimbaud num poema seu (em Poesia Sempre, 2006):
“Tudo ficou azul: o bem-te-vi azul, a rosa azul, a caneta bic azul, os trogloditas dos enfermeiros. Tudo ficou amarelo. Foi quando vi Rimbaud tentando se enforcar com a gravata de Maiakovski e não deixei.
“Pra que isso Rimbaud? Deixa que detestem a gente. Deixa que joguem a gente num pulgueiro. Deixa que a vida entre agora pelos poros. Não se mate irmão. Se você morrer não sei o que será de mim. Penso em você pensando em mim.
“Rimbaud tudo vai ficar da cor que quiser.
“Aqui não dá pra ver o mar. Mas você vai sair daqui.
“Tudo ficou verde da cor dos olhos de meu irmão e da cor do mar. Do mar. Rimbaud ficou feliz e resolveu não se matar.”
Outro carioca, Armando Freitas Filho, escreveu o poema Com óculos Rimbaud (obviamente, um jogo de palavra com óculos ray-ban):
“Escrevo sob a luz entrecortada
das bombas que explodem nas águas da televisão.
Senão estaria tudo escuro
aqui dentro.
E o branco da folha, aí fora
neste barco livre
não seria alvo
dessas iluminações sobressaltadas.”
A imaginação da alagoana Flora Furtado girou “Em torno de Rimbaud”, poema publicado em 2006 na Poesia Sempre:
“minha imagem, restauro no espelho das letras
levíssimo farfalhar de asas em copas de tardes chuvosas
cardume de vogais fricativas modulações verbais teorema
das cores dodecafônica babel presságios epigramas língua
carnal palavras-ventrículos espraiam olho nodal bordejam
estuário vivificante, embriago-me em cálices de beleza
miséria e dor, ah tortuosa vidência, olhos iridescentes
desértica ofuscação luz abissal
afagaria teus cabelos e assim como Verlaine honraria o teu nome.”
O paraibano Hildeberto Barbosa Filho, ironiza, em Verbete alguém que: “Nunca leu Rimbaud/ Nem Rilke nem Ramon.”
Em 2007, uma nova tradução de “O barco ébrio”, de Jayro Schmidt, foi lançada pela editora da Universidade Federal de Santa Catarina.
Melhor do que o ponto deste passeio por mais de um século sobre a “presença” de Rimbaud no Brasil é talvez, uma exclamação, ou as reticências. O seu adieu/adeus em Une saison en enfer:
“Recevons tous les influx de vigueur et de tendresse réelle”.
“Recebamos todos os influxos de vigor e de ternura real”.
Ainda das traduções no Brasil
Das traduções brasileiras de Une saison en enfer as mais elogiadas são as de Lêdo Ivo, nos anos 1950, e Ivo Barroso, nos anos 1970. Este último prosseguiu no seu labor de verter para a língua portuguesa do Brasil todos os poemas em verso e a correspondência de Rimbaud.
Num admirável artigo sobre traduções, Lêdo Ivo explica como procedeu no seu próprio trabalho:
“Ao traduzir Rimbaud, vali-me, evidentemente, dos melhores textos – do da Pléiade, estabelecido por Rolland de Reneville e Jules Mosquet, para Une saison en enfer, e o de Bouillane de Lacoste, para Illuminations. Em ambos, foram corrigidos os erros e incoerências do texto tradicional de Patrice Berrichon. E, se ora me refiro a esse pormenor, é que o acingir-se a um texto inteiramente fidedigno e confiável se torna essencial para que o tradutor cumpra com eficácia o seu ofício – o qual, aliás, deve assentar-se no conhecimento das duas línguas, evitando-se assim, as ocorrências anedóticas ou degradantes ou os molestamentos dos que traduzem livros de Economia e Finanças, Administração e Ciência Política num jargão anglo-piauiense. (...)
“Assim, engastados numa grande tradição poética e linguística, os poemas em prosa de Rimbaud são intrinsecamente poemas, com o seu ritmo próprio, as suas medidas tão cadenciadas como um verso de Racine ou de Verlaine. Têm a sua música insubstituível. Ao tradutor eles impõem o desafio de verter não apenas palavras e imagens, mas o de transferir para um outro idioma uma certa modulação ou melodia enraizada no próprio coração da linguagem poética.
“Em Rimbaud, que tanto bebeu em Victor Hugo, pilhando as suas palavras e imagens (especialmente os vocábulos marítimos, quando escreveu Le bateau ivre), o clima encantatório é a sua chave sem porta, o seu mistério genuíno.
‘La mer de la veillée, telle que les seins d’Amélie’.
‘O mar da vigília, tal como os seios de Amélia.’ A realidade verbal habita o poema, dispensando a intermediação da realidade vivida ou ambiental – e como traduzir essa realidade que já cortou as amarras com a outra realidade, como um navio que, tendo levantado a âncora, não está mais no porto?
“Seja-me permitido recorrer mais uma vez a Manuel Bandeira, para estabelecimento de um cotejo necessário. Em seu artigo ‘Rimbaud traduzido’(incluído em suas Obras Completas, da Aguilar), ele observa: ‘Não terei tempo agora de cotejar com o original de Rimbaud a tradução de Lêdo Ivo. Mas imagino que o seu principal trabalho terá consistido em achar em português ou sucedâneos dos sortilégios verbais do Vidente. Comparem-se estas três linhas de ‘Ornières’: ‘ – Même des cercueils sous leurs dais de nuit dressant les panaches d’ébène, vilant au trot des grandes juments bleues et noires’ com a tradução de Ivo: ‘Até esquifes sob seus dosséis de noite, erguendo os penachos de ébano, correndo ao trote de grandes éguas azuis e negras’. ‘Grandes juments bleues et noires’ difere muito, do ponto de vista da alquimia verbal, de ‘grandes éguas azuis e negras’. A tradução literal deu certo, no entanto: ‘égua’ é mais belo que ‘juments’, ‘azuis e negras’ é tão belo quanto ‘bleues et noires’. Mas se não fosse assim, Ivo teria de dar um jeito fora da letra para não trair a forma – esta forma que é essencial em Rimbaud (Claudel comparou-lhe a sonoridade à do ‘bois moelleux et sec d’un Stradivarius). Que dizer de certos poemas de Saison en enfer? Eu duvidei e fiz pouco quando Ivo me falou de sua tradução. Devo, porém, reconhecer que ele lavrou um tento, aproximando-se bastante do original sem mentir à poesia do original. Seria muito difícil, senão impossível, fazer melhor’.
“Rimbaud é traduzível? É intraduzível? Sim e não, isto e aquilo, ambas as respostas são cabíveis, desde que se veja numa tradução aquela bela infiel a que alude Émile Herriot.”