McKafka?
Na década dos anos 1920, um judeu consciente que estava planejando o seu futuro e tentando conjugar a sua vida com as realidades nacionais, dispunha de três horizontes, três escolhas. Ficar onde estava, onde tinha nascido; emigrar para a América, no sentido amplo da palavra; ou tentar o caminho mais radical, revolucionário, a opção do sionismo.
Emigrar para a Palestina naquele momento, quando Kafka ainda era vivo, ou seja, nos primeiros anos da década de 1920, era relativamente fácil. Fácil por quê? Porque a Palestina, sob o domínio britânico, estava aberta, ainda sem as limitações que viriam ser impostas ao final da década, quando as tensões políticas e étnicas entre judeus e árabes viraram um elemento essencial na vida dessa terra sob o domínio dos ingleses. Mas era também complicado. Era preciso ter capital, ou, pelo menos, uma profissão viável.
Podia Franz Kafka emigrar à Palestina? Podia, sim. Já estava apreendendo o hebraico, e tinha amigos como o filósofo Hugo Bergmann, dos fundadores da Universidade de Jerusalém e o primeiro diretor da Biblioteca Nacional no seu formato acadêmico e formal. E a sua profissão poder-lhe-ia ser útil, porque a empresa onde Kafka trabalhou em Praga, a Assicurazzioni Generali, existia em Jerusalém.
Em 1923, Elsa Bergmann, a esposa do professor, visitou Praga, onde tratou de assuntos práticos, como a procura de um apartamento para Kafka e alguma ajuda financeira ao escritor doente. Kafka viu a viagem de Elsa como uma oportunidade, e sugeriu acompanhá-la de Praga à Palestina. Não se tratava de cortesia nem de gesto de amizade. Franz Kafka falava com Hugo Bergmann sobre a hipótese de emigrar definitivamente e se estabelecer na Palestina. Bergmann, no que parece uma reação quase de pânico, responde com diversas objeções. O professor explica que a casa do casal Bergmann em Jerusalém é pequenina, que Kafka seria obrigado a dormir no quarto das crianças, que o melhor seria esperar um pouco mais na Europa, que Kafka está doente, e a viagem poderia ser perigosa, e mesmo que terminasse bem, deixaria o escritor numa terra inóspita, de clima inclemente, exposto a muitos problemas materiais. Ser imigrante aos 40 anos, e com tuberculose?
Mas Kafka, um espírito que poderia ser interpretado como esperançoso ou talvez infantil, pensa que os problemas têm uma solução simples. A sua mente febril inventa um projeto. Abrir um restaurante na Palestina. Cozinha e cardápio ficariam nas mãos de Dora Diamant, e dele mesmo, que ia ser o gerente e maître, atendendo os clientes.
Lamentavelmente (ou não), o projeto ficou só no papel, numa carta a Bergmann. Hoje, com a distância de um século e nos baseando na perspetiva histórica, a ideia parece, sim, uma semente saída da fantasia kafkiana. Mas as cidades da Palestina que acolheram imigrantes do universo cultural europeu, viram a fundação de muitos restaurantes, bares, cabarets e salões de dança, geridos por intelectuais de língua alemã, muitos com doutorados das melhores universidades do mundo, que estava quase pronto para virar O Mundo de Ontem.
Poderíamos imaginar, pois, o restaurante Kafka, quer em Jerusalém, quer na dinâmica cidade de Telavive. E se continuarmos a fantasia, imaginemos o surpreendente sucesso do estabelecimento, as saborosas comidas, a respeitável lista de vinhos, e os avatares sucessivos do “Kafka”, até a década dos anos 1990, quando viria a ser comprado pela McDonald´s, que, de acordo com o costume, respeitaria o colosso literário com uma placa dourada. E talvez com uma sobremesa de maçã com canela e creme de leite: o McKafka.