Franz Kafka é apreciado pelo seu domínio de língua alemã. Do início da sua fama mundial, os críticos têm elogiado o seu estilo linguístico, usando adjetivos como “perfeito”, “limpo”, “nítido”, “cristalino”, “castiço” e “puro”. Essa pureza merece um comentário, mas, antes, podemos perguntar: era o alemão de fato a sua língua materna? Ainda melhor: Qual língua pode, ou deve, ser considerada como a sua língua materna?
Os leitores lusofalantes sabem que se trata de uma questão importante, com um peso simbólico e implicações culturais. Sabem isso por aquele poeta que afirmava “a minha pátria é a língua portuguesa”. Ele, lembremos, foi formado em Inglês, estudou em escolas inglesas em Durban, e até os 17 anos, considerava que o seu futuro acadêmico ia ser na língua de Shakespeare, nas salas de aula antigas de Cambridge. Mas a formação linguística de Fernando Pessoa foi pelo menos bilíngue, e o resultado, além do seu estilo pessoal fragmentário e esquivo, é um português idiossincrático, hoje facilmente identificado por aquilo que é: o português de Pessoa.
O caso de Franz Kafka é ainda mais complexo. De família judia asquenaze, ou seja judeus europeus com raízes na área entre a Europa Central e as partes mais orientais, mas sempre no âmbito das línguas germânicas, no seu confronto com as eslavas. A família Kafka é da Boêmia, que, junto com Morávia, formava a parte oriental da zona checa, logo conhecida como parte da Checoslováquia moderna. No início do século XX essas partes pertenciam ao império austro-húngaro, onde a língua franca era o alemão. Kafka foi formado no alemão da família e logo da escola primária em Praga.
Na sua casa se falava um alemão influenciado pelo Iídiche, a língua germânica dos judeus asquenazes, documentada a partir do século XVI, que se desenvolveu do alemão do final da Idade Média. A presença do Iídiche no alemão notava-se tipicamente no sotaque, e o resultado era chamado mauscheldeutsch. O Iídiche tem o seu próprio vocabulário, que inclui palavras de diversas línguas como o hebraico, o aramaico, o turco, as línguas eslavas e o inglês, além do substrato alemão medieval. Tem também a sua gramática, formas verbais, expressões idiomáticas e uma cultura literária própria.
Era fácil reconhecer um judeu asquenaze falando alemão, e para uma família vinda a Praga das províncias, o alemão era a língua de prestígio, a porta ao mundo geral, às profissões modernas, à respeitabilidade da burguesia que valorizava a cultura de Goethe. Um jovem laico, afastado da cultura judia ancestral, como Franz Kafka, não podia fugir da obrigação não só de dominar o alemão, mas de utilizar a versão mais formal, castiça, exata. Isso foi exatamente o que Kafka fez.
Havia ainda um pano de fundo, um contexto rico, contraditório e complexo. A língua tcheca, falada nas ruas, nas tavernas, nas lojas, e pelas empregadas em casa, com os seus contos infantis e a sua mitologia e o seu folclore, era parte da vida de Franz já na sua infância. A isso, temos de somar o Iídiche, representado pela paixão de Kafka, na sua mocidade, pelo teatro Iídiche, que tinha produções dramáticas originais, grupos teatrais modernos, até de vaudeville, além de uma longa tradição de mais de 400 anos de teatro judeu que tratava temas ligados ao cânon bíblico e a vida dos judeus nas suas comunidades, enfrentando problemáticas humanas e particulares.
Visto assim, o tema da identidade linguística de Kafka vira controvérsia. Se bem foi elogiado pela sua língua formal, econômica, perfeita, límpida e cristalina, com uma sintaxe perfeita, a sua formação trilíngue indica que Franz Kafka pertencia ao mundo da língua alemã, mas, ao mesmo tempo, era um estrangeiro. Dir-se-ia que era até um intruso. Felice Bauer, a sua namorada, nascida em Berlim, encontrava erros nos seus textos em alemão. Era essa a sua segunda língua, como parece afirmar Felice? Se é assim, qual era a primeira? Outra namorada, Milena Jesenská, dá-se conta de que Franz não conhece expressões idiomáticas em tcheco. Aprendeu a língua na cozinha, na rua, nos becos escuros da sua Praga natal. Mais uma segunda língua? Possivelmente. E o Iídiche? Entende as obras de teatro, diverte-se com o que está vendo e ouvindo no palco, mas o Iídiche não é uma língua que Kafka utiliza de maneira natural e quotidiana. Uma terceira língua? Pode ser, porque o Iídiche não é para Kafka uma segunda língua.
Quando Fernando Pessoa diz que a sua pátria ser a língua portuguesa, é necessário nos lembrarmos de que ele quer se estabelecer num contexto cultural e literário onde podia ser visto como intruso. Sem conexões na alta sociedade lisboeta, sem proteção de uma família que tivesse dinheiro e status, eventualmente quase abandonado numa cidade com um alto índice de analfabetismo, Pessoa emerge, se inventa, como um fenômeno esquisito, único e múltiplo. Kafka tem só uma identidade, que pode ser comparada com uma medusa. Existe, mas é transparente, bóia nas águas da cultura na língua alemã, mas sempre é a identidade de um estrangeiro, de sobrenome tcheco, um sobrenome inventado pelo avô que usava a imagem de uma gralha, uma kavka, como logotipo na sua loja.
O paradoxo é típico de Kafka. É a sua perfeição linguística que o coloca na posição de estrangeiro. É o adjetivo, tão comumente usado como qualificativo de seu alemão, que hoje, 100 anos após a sua morte, nos incomoda: limpo. Limpeza e sujidade, grande tema no desencontro produzido na Europa Central, na cultura alemã. Nada era mais importante para o nacionalismo alemão, nas duas ou três gerações desde as revoluções de 1848 e o auge do regime nazista, do que a limpeza. Percebida nos termos ibéricos-inquisitoriais, como a infame limpieza de sangre, a limpeza era aquilo que marcava a diferença entre o civilizado e o bárbaro, o filho legítimo da cultura e a pessoa que adotou a cultura de prestígio, a que finge pertencer.
O fato de Kafka ter chegado a ser qualificado como um autor cuja língua é limpa, tão perfeitamente limpa, pode indicar que a maior invenção de Franz Kafka foi Kafka, o escritor de língua alemã. Nunca foi reivindicado como autor alemão, porque tendo nascido em Praga, no Império austro-húngaro, não podia ser visto como filho da Alemanha. A sua identidade judaica, mesmo de judeu laico, moderno e cheio de dúvidas, não tinha um espaço natural no imaginário cultural alemão, como foi amplamente provado entre 1933 e 1945.
Neste contexto, a história afirmou que Kafka teve a sorte de morrer antes do nazismo aparecer como força política arrasadora. Essa, naturalmente, o qualificou de decadente. Limpeza de língua não era limpeza de sangue, era até um sinal de que o intruso tinha ultrapassado os limites. Ao passar o tempo, Kafka é lido mais como um autor sui generis cuja língua de expressão é ligada intimamente com o seu mundo artístico. Ficou sem língua materna, sem pátria, mas com a glória do gênio literário.