Barata, tuberculose e depressão

Conseguiria Kafka ser um escritor em hebraico? Ficou nos exercícios, em cartaz, comentários, alguns textos sobreviveram

Aventura intelectual ou projeto de vida? No ano de 1917, o mesmo do diagnóstico de tuberculose que ia marcar o tempo limitado que lhe restava, Franz Kafka começa a estudar uma nova língua, o hebraico. Começa sozinho, com um livro didático para falantes do alemão. 

Mais de seis meses depois, o seu amigo Max Brod, sionista idealista, que estava preparando a sua eventual emigração à Palestina, ficou surpreso. O seu melhor amigo apreendendo hebraico, sem ter lhe falado nisso? Brod, que já conhecia o hebraico, é designado por Kafka como parceiro de uma correspondência no idioma, porque Franz precisa aplicar os seus primeiros conhecimentos da língua ancestral, e tão diferente! Parece que Kafka queria ler a Bíblia na sua versão original, mas essa está escrita em hebraico bíblico, uma língua de há 2500 anos, muito diferente da língua moderna do livro de Moshé Roth, com os seus contos simples e uma grande variedade de exercícios. 

Seja como for, Kafka começa a preencher cadernos. Listas de palavras, primeiras frases de principiante, textos curtos. Brod não está entendendo as razões, mas colabora com Kafka, que agora se está interessando no sionismo, no socialismo, e lê a imprensa sionista em alemão. Além disso, informa-se dos sucessos da imigração judia à Palestina, ao final de Primeira Guerra Mundial, com a queda dos otomanos, vencidos pelo exército britânico do general Allenby. A Palestina, dominada agora pela Grã-Bretanha, já não é só a terra ancestral, mítica. É uma realidade, que impulsiona Kafka à aprendizagem da língua moderna usada cada vez mais pela comunidade judia e sionista que lá mora. 

Kafka trabalha afincadamente, com uma persistência admirável. O que começou sendo uma atividade exótica, um jogo intelectual, se torna mais sério. Depois de 1921, já tem professora: uma jovem vinda a Praga da Palestina para fazer o curso de medicina. Chama-se Puah Menczel. As aulas continuam, apesar da doença de Kafka. Franz escreve, Pua corrige. Cartas do aluno à sua professora contêm a dinâmica típica. “Não fique zangada comigo, eu já estou suficientemente zangado pelos dois... Antes de você corrigir os meus erros... estarei mais uma vez na sua casa...”, tudo em hebraico, naturalmente. 

Os anos se passam e Kafka comenta, em hebraico, fatos que acontecem na Palestina. Por exemplo, uma greve de professores na Palestina o leva a escrever, com algumas dificuldades, num estilo rudimentar, mas basicamente sem erros: 

“Dos pesados e profundos suspiros que sobem da pressão econômica que o sionismo e o trabalho na Terra de Israel estão sofrendo...os professores tiraram nove partes, e oito destas tiraram os professores de Jerusalém. Não há fim às ameaças de greves nem aos protestos e os memorandos que voam daqui para lá num estilo barulhento e fervente. Ficamos com a impressão de que os professores caíram na pior situação de todos os trabalhadores na população hebreia e que são os únicos que sofrem e são discriminados no seu salário... A questão do salário dos professores virou a principal e a mais urgente, como se nela começasse e acabasse todo o sofrimento e a dura luta desta era miserável...”

Kafka escrevendo em hebraico um texto que trata de burocracia, da realidade de funcionários oprimidos. Poderia se desenvolver num escritor em hebraico? Outros completaram a passagem, sempre vertiginosa, sempre incerta. Ele ficou nos cadernos de exercícios, em cartas, em breves comentários. Muitos dos textos em hebraico não sobreviveram, mas alguns, incluindo um caderno inteiro, estão no arquivo Kafka na Biblioteca Nacional de Israel, na Jerusalém que Kafka nunca viu.

Nos últimos sete anos da sua vida, Franz Kafka foi um aluno dedicado e constante. Chegou a um nível básico bom e até além disso. Ainda temos exercícios que ele fez. Por exemplo, no livro de Moshé Roth, há um conto curto, didático, que serve para ensinar palavras ligadas à floresta. Um conto típico, alemão. Os pais e o menino andam pela floresta – cantando, naturalmente, uma canção em hebraico e veem diversos animais. Um animal está sentado num galho, lambiscando as suas patas. É o esquilo. Os leitores do conto – alunos de nível básico –  têm que responder a uma pergunta simples: “O que está fazendo o esquilo?”

Kafka usa o momento para escrever um conto original. Agora é uma esquila, uma esquilinha que pula, salta, sobe e parte nozes, e a sua maravilhosa cauda é famosa nas florestas todas. “E se vocês perguntarem para onde é que ela vai com tanta pressa, ela não vai responder. Não têm tempo para patetices!”

O lado escuro de Kafka fica também na evidência, no material que sobreviveu às gerações. No caderno, nas listas de palavras, incluiu as palavras hebraicas que significam “barata”, “tuberculose” e “depressão”. Realidade? Sem dúvida. Armadilha para os futuros pesquisadores? Talvez.

Kafka hebreu. Aluno brincando, intelecto insaciável, judeu consciente, homem com sonhos e fantasias, e sempre, mas sempre, um escritor. 

PS. As ironias da História nunca param. Puah Menczel, a professora de hebraico de Kafka é a mãe de Ehud Netzer (1934-2010), célebre arqueólogo da época romana na Palestina, que, em 2007, descobriu no sítio de Herodeum uma tumba importante. Netzer estava convencido de que era a tumba do rei Herodes. Após a morte de Netzer, em 2010, de uma queda que sofreu na escavação, a hipótese foi confirmada: tinha descoberto a tumba de Herodes.