Costumamos associar o tédio ao desgosto, à monotonia, à pasmaceira. Ao vazio. Um homem entediado é uma sala de que foram retirados todos os convidados e todos os móveis. As cortinas foram arrancadas e o sol se derrama, ameaçador, pelas janelas. As telas, as fotografias, os documentos foram removidos. Dela roubaram todo o passado. Com isso, o presente se desfigura e desaparece também.
Esse mundo de imobilidade e ausência se encorpa, com força, nas Quatro peças, de Anton Tchékhov, reunidas, traduzidas e apresentadas por Rubens Figueiredo, em delicada edição da Penguin Companhia. Agora mesmo acabo de ler a terceira delas, As três irmãs, de 1901. Meu coração gela diante do vazio devastador. Nas frestas do grande nada, porém, ergue-se a grandeza de Tchékhov.
Tenho, desde menino, a mania de revirar as coisas. De buscar seu avesso. Meus pais enlouqueciam só porque, por curiosidade, eu tinha o hábito de inverter os quadros nas paredes da casa. Intrometia-me na cozinha, como um falsário, para revolver a posição de panelas, talheres, travessas. Frustrava-me quando invertia os espelhos e nada acontecia, pois as imagens continuavam iguais. Mas não desistia de meu jogo de inversão.
Houve o dia em que decidi usar as roupas pelo avesso e calçar os sapatos com os pés trocados. “Você parece um palhaço”, minha mãe me disse. Passei também a escrever da direita para a esquerda, como os árabes e os japoneses, e a dormir com os travesseiros enrolados nos pés. Preocupado, meu pai me levou ao médico. “Alguma coisa não está certa nesse menino”, explicou. O doutor pediu paciência, era coisa da idade, da pré-adolescência, e logo passaria. Nunca passou.
Tanto que agora me vejo revirando a melancolia infiltrada nas quatro peças de Tchékhov.. Não, o tédio não é só a inércia e o cansaço. Pode ser o contrário. Penso nos meninos que passam os dias debruçados sobre os celulares, devorando imagens, saltando páginas e páginas, correndo atrás de um fim que não existe. Apesar da agitação, também eles estão entediados. Estão mais, estão anestesiados. Mesmo na posição de perseguidores – dizem: “seguidores” –, eles se afastam cada vez mais do mundo. Ainda estarão vivos? Sim, porque alguma coisa dentro deles se perdeu, talvez para sempre.
Certa manhã, no metrô do Rio, durante uma viagem mais longa, resolvi caminhar pelos vagões e observar discretamente esse tédio do movimento. Pensei até que poderia escrever sobre ele. E estou mesmo agora escrevendo. A maior parte dos passageiros, não só os meninos, estava mergulhada nas imagens luminosas. Pareciam ativos, acelerados, frenéticos, muito vivos. Mas estavam hipnotizados e, em uma inversão, eu logo os vi como zumbis.
A agitação interior e o buscar vertiginoso podem ser outra imagem do tédio. Esses tremores do vazio têm uma aparência fértil e viva, mas não passam de farelos. Eles eram personagens de Tchékhov no metrô do Rio. Voltando à infância, me lembro de Lucílio, um colega de sala, que sonhava em se tornar equilibrista. “Eu preciso de um fio”, ele me dizia. “Preciso me agarrar a algo”. Vivia agitado, tinha desmaios como as pacientes de Freud, sofria de um tremor contínuo, que os médicos afirmavam ser neurológico, mas, hoje sei, era existencial. Nada havia dentro do espírito convulso de Lucílio. Tremer era só uma forma de não existir.
Um dia, eu lhe perguntei: “Por que você não para”? Sua alma era desprovida de um centro de gravidade. Era errática e, por isso, frenética. Ele tremia. Alguns viam ali a prova de uma sensibilidade incomum. Mas, no dia em que o médico conseguiu curá-lo da agitação, Lucílio entrou em depressão. Dentro do tremor, nada havia. No interior do corpo que se agitava, só o tédio também. Agora me vejo obrigado a fazer mais uma inversão: desde Tchékhov, em vez de avançar, o mundo andou para trás.